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No início era uma luz. E foi essa luz que me fez desejar ficar aqui.
Depois foram surgindo espaços para os olhares ao redor e eu descobri a mata.
O verde só foi crescendo e, fazendo cortina para o dia, me permitiu encontrar os pássaros resistentes, que, mesmo na cidade, insistiam em ser até mesmo gaviões, além de andorinhas, gaivotas, rolinhas e pardais. Ficamos quase íntimos. Juntos recebemos cigarras, vimos brotar, no frio concreto das paredes do prédio, singelas flores coloridas e deixamos ir e vir até um periquito australiano, mensageiro de esperança. Tudo verdade.
Um dia, depois do massacre da obra ao lado, que me obrigou a me ensurdecer mais que com os dois fluxos das ruas que eu desenhei rios, para parecerem mais suaves, de repente, acenderam 12 holofotes e puseram três moços bonitos e bobos, num outdoor, olhando um telefone celular, como cenário para minha vida. Estarrecedor!
Bem que eu quis espernear. Até escrevi para os jornais. Mas de nada adiantou eu lembrar que o dia que não acaba nunca, estendido pela luz artificial excessiva, expulsa os pássaros, que não tomam aditivos e precisam dormir para voar no dia seguinte…
Durante esse tempo, felizmente, assisti também, emocionada, a professora do CIEP em frente preparar a horta com seus alunos. Depois os vi colher, mas não voltaram a plantar. Todo dia eu olho, com a esperança que o ciclo recomece… Em vão, até agora.
Segunda-feira passada, eu estava almoçando quando ouvi os estampidos. Eram freqüentes e foram muitos e cada vez mais fortes. Eram tiros, descobri perplexa.
A varanda virou território fronteiriço e eu me abriguei no espaço virtual, para entender o que se passava, nas notícias filtradas pela tela. Horas de espanto, mal estar, impotência.
Liguei para o paciente adolescente, que não viesse. Liguei para a nora, que não deixasse sair minha neta e me pus a ocupar-me dos interiores, para esquecer que lá fora, era a guerra.
O estudo de geografia nunca me pareceu muito útil, mas sei o suficiente para compreender que a Ladeira dos Tabajaras fica do outro lado do Humaitá. E a bússola de minha sensibilidade me mostra que a desmedida, que o incontrolável, que o insuportável, que a vida-como-ela-é fica do lado de lá, bem em frente. E que pode descer, entre tiros, granadas, vigiada ou não por helicópteros e me lembrar que está na minha hora de partir.
Dessa vez os pássaros voaram em bando, assustados pelas explosões que não respeitavam seus lares.
Sofri mais uma vez por eles, que vão ser obrigados a migrar, para poderem sobreviver.
Eu também.
Que ao menos possamos abrir nossas asas a favor dos bons ventos e que sejam eles nossos guias.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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