Vladimir Souza Carvalho 6 de novembro de 2011
          Seu retrato está aqui, bem em minha frente, ao lado do computador. Aproveitei o quadro que vovó Brasília mantinha na sala da frente, ao lado dos seus cinco filhos, a galeria que a gente menino não cansava de apreciar. Não havia a das três filhas. Era privilégio dos homens, dos quais, só um, entre todos, tio Eladio, remanesce. A morte de vovó desfez a galeria. O seu quadro foi parar em Itabaiana. E, aí aproveitei para fotografá-lo, mantendo a cópia, em tamanho pequeno, no meu gabinete, a observá-lo enquanto estou digitando.
          Você está tão novo na foto que não me lembro dessa sua fisionomia. Acredito que date do tempo do meu nascimento, nos idos de cinqüenta. Não sei ao certo. O que nela vejo são os olhos e os cabelos que dois netos herdaram. Os olhos de Iana e de Vladimir, herdeiros do seu cabelo de frio grosso, de sua cabeleira cheia que outras fotos, dessa época, exibem, as semelhanças físicas que o sangue vai passando adiante.
          O seu nome hoje simboliza uma suave saudade nessa ausência que se eterniza, a fixar nesse dia, precisamente cinco de novembro, vinte e dois anos de sua partida. Num domingo, pela noite, a notícia chegando, e eu indo a Itabaiana para vê-lo morto, eu, que na sexta-feira, o vi sair do hospital e se despedir de tio Eladio, com uma frase que demonstrava a consciência que portava da debilidade física que lhe aconchegava o corpo: se a gente não se ver mais, ouvi bem, enquanto o irmão não segurou as lágrimas. Ah, meu pai, a chegada em Itabaiana, no domingo, à noite, foi terrível, sem saber onde o veículo deveria ser estacionado, se de um lado, se do outro lado, as pernas pesando no atravessar a rua para vê-lo deitado, olhos fechados, mãos cruzadas, a camisa sem gravata. Depois a gente se acostuma com o cenário, louvando os setenta anos, onze meses e cinco dias que ostentava, único, entre os oito irmãos que não arredou os pés de Itabaiana, onde fez família e criou raízes, que se multiplicaram e se multiplicam, os filhos gerando filhos, os netos a transformá-lo em bisavô e novas gerações que virão pela frente da meninada de hoje, em cuja linha reta de ancestralidade, você estará sempre como um ponto no roteiro da história familiar.
         Mas não é só saudade. É falta. É ponto de apoio que cessou. É a cumeeira que aguentou o peso do telhado até que este cresceu e se tornou independente. Só aí a cumeeira ruiu, porque não poderia ser eterna, nem ninguém sabia o que era pressão alta nem os danos que causava. Devagar, sem pressa, o vermelho do seu rosto desapareceu para dar lugar a um amarelo pálido, a insuficiência renal tornando a fisionomia magra e cadavérica, as energias físicas desaparecendo até que necessitou de ajuda de uma bengala, o corpo sem querer obedecer ao comando da mente, o envelhecimento precoce que dava aos seus setenta anos a feição de um ancião. E você sentado e calado numa cadeira, a espera da morte, a ponto de dias antes ter ido ao cemitério, sozinho, se arrastando na bengala, para ver onde ia ficar, certo de que ali só voltaria morto. Assim cumpriu. Ocorreu.
          Os vinte e dois anos surpreendem mamãe como prisioneira de uma cama e de uma cadeira, sem movimentação, sem articular nenhum som, a depender da ajuda de terceiro para sobreviver. Quem poderia imaginar que a namorada que se tornou noiva e depois pulou para a condição de esposa, mãe de seus três filhos, companheira dos momentos de trabalho, ao seu lado para todas as necessidades do dia a dia, tornando-se a sua grande enfermeira das vinte e quatro horas por dia, chegaria a tal ponto, num contraste com o retrato do rosto mimoso e das formas perfeitas dos primeiros anos de casados, pendurado no quarto, que ela talvez não consiga mais identificar-se?
          Pois é, meu pai. É a vida se misturando às doenças, tudo caminhando em direção a um só destino, traduzido na morte. Mas, morte física, óbito do corpo, porque na semente plantada, o sangue transporta a fisionomia, e, nesta, no sentar com as mãos entrelaçadas, automaticamente, eu me torno sua cópia, ou quando, barba para fazer, a fisionomia que a gripe acarreta, de manhã cedo, me vendo no espelho me espanto com a semelhança, ficando a perguntar se sou eu mesmo ou se é você que, com permissão dos bons anjos, me espiona através do espelho.
          E só por aí a gente conclui que você não morreu, se localizando os vinte e anos de ausência como o reflexo de uma viagem sem volta, que não pode ser denominada de morte, porque só morre realmente os que não são lembrados. Alguém já afirmou. Reitero, aqui.
Publicado no Correio de Sergipe
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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