professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *
A recente morte do chefe líbio Muamar Kaddafi e as muitas imagens e fotos de seu cadáver ensanguentado que correram mundo na mídia e na internet carregam consigo mais que a notícia da morte de um ditador.
Quando o primeiro ministro do Conselho Nacional de Transição líbio confirmou a morte do ex-líder em Sirte, suas palavras foram: “Esperávamos havia muito tempo por este momento. Muammar Kaddafi foi morto.“ Em seguida, o corpo do ditador foi levado para uma câmara fria e ali ficou exposto à visitação pública, juntamente com o corpo de seu filho, durante quatro dias, para só após ser enterrado.
A necessidade que parece estar presente quando da morte de um ditador longamente perseguido e finalmente capturado de expô-lo à execração pública como um troféu repete-se uma vez mais. Todos que estivemos atentos ao noticiário dos últimos anos, ou das últimas décadas, e que não perdemos a sensibilidade nos lembramos com horror da despudorada exposição de vários destes cadáveres.
O “Duce” italiano Benito Mussolini e sua amante Clareta Petacci, pendurados de cabeça para baixo na praça central de Milão, amarrados pelos pés como aves caçadas que esperam para ser depenadas e cozidas. Nicolau Ceaucescu, o cruel ditador romeno e sua esposa Elena, cujos rostos sem vida povoaram as primeiras páginas dos jornais comprovando a vitória das forças adversárias e o desmoronamento do regime comunista na Europa Oriental. Outro poderoso e cruel ditador, Sadham Hussein, cuja imagem inerte, pendurado da forca no porão de uma fazenda, correu mundo.
Essa exposição despudorada de cadáveres apreendidos e executados de líderes controvertidos e tirânicos após sua captura tem alguns traços em comum que merecem uma análise mais cuidadosa. Se é verdade que até mesmo Santo Tomás de Aquino, o grande mestre da Igreja e da Teologia universais, admitia o tiranicídio como último recurso para salvar um povo, por outro lado é forçoso constatar que parece haver, por parte dos que executam sumariamente tais ditadores, a necessidade de expor exageradamente sua morte como rito de passagem para um novo estado de coisas.
Assim pareceu ser no caso de Mussolini, cujo cadáver juntamente ao de Claretta simbolizava a derrota do Eixo e a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. A visão dos cadáveres parece haver impressionado sobremaneira Hitler, que decidiu suicidar-se para não ser exposto da mesma maneira. Assim também pareceu ser no caso de Ceaucescu, quando seu cadáver junto ao de sua mulher marcava o fim de uma era não apenas para a Europa Oriental, mas para toda a humanidade. E assim com Saddam Hussein, desta vez com sutis implicações políticas, onde os amigos e aliados de outrora (notadamente os EUA) passaram a ser os inimigos de então. A necessidade de exibição do cadáver para comprovar o fim da ameaça representada pelo anterior líder comprovou-se igualmente no caso de Kadhafi.
Parece que exibir o tirano derrotado e reduzido a nada, espoliado em seu anterior poderio, curvado por forças superiores às suas e enfim derrotado e morto, faz o contraste com o período anterior, quando seu poder e sua força representavam um perigo e uma ameaça para os objetivos daqueles que acabaram por consumar sua morte. Um cadáver é necessário para comprovar quem são os que agora detêm o poder.
No caso de Kadhafi, ninguém pode negar sua crueldade e sua arrogância de líder político absolutista e sanguinário que governou a Líbia com o terror, arrogando-se direitos absolutos e privilégios intoleráveis. No entanto, para que expor desta maneira alguém que já foi derrotado e se encontra morto? A quem interessa a marcha triunfal deste cadáver? Troféu de que vitória é o corpo do líder morto e exposto sem pudor e sem piedade?
Perguntas que interpelam e fazem refletir. Mimetizar a violência que se combate, pisotear triunfantemente sobre a derrota e a morte alheias é desmerecer a própria luta, trair os ideais que ela moveu. É, enfim, negar e minimizar a condição humana. Triste humanidade que precisa expor seu lado mais sombrio e que invade os olhos das novas gerações com tão macabro espetáculo.
* Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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