Dade Amorim - In Memorian 7 de novembro de 2011

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O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo, até mesmo do Brasil. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas de bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê.

Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E só as (poucas) cotias do Campo de Santana não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só pra ver um vôo se desenhar no meio do céu.

De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio.

São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. O carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons. Pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca por qualquer bobagem e parte para a briga.

É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.

E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes cariocas criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora e atrapalha a vida. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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