teóloga, professora do departamento de teologia da PUC-Rio *
          Há homens que têm um instante de criatividade e são bons. Há outros que têm um “insight” genial e são melhores. Há outros ainda que durante muitos anos têm várias inspirações geniais e são muito bons. Mas há ainda outros que a todo o momento e mesmo na doença e na morte continuam estrategicamente lançando fagulhas que incendeiam as retinas e as imaginações da humanidade. Seriam estes os imprescindíveis?
          A morte de Steve Jobs lançou no céu da adoração mundial um novo mito. O indubitavelmente genial inventor e fundador da Apple vinha realizando lenta e progressivamente sua saída de cena da empresa devido à saúde precária, após a descoberta de um câncer no pâncreas. Em 2009 anunciou seu primeiro afastamento. Seis meses depois voltou. Em 2011 ausentou-se pela segunda e definitiva vez. A notícia de sua morte, no dia 8 de outubro deste mesmo ano, provocou uma verdadeira comoção mundial.
          Steve Jobs nasceu em São Francisco, no estado da Califórnia (EUA). Com apenas cinco anos mudou-se com seus pais adotivos para Palo Alto, cidade que posteriormente ficaria conhecida como um dos polos da tecnologia e comporia o chamado Vale do Silício. Em Palo Alto, Jobs conheceu seu amigo e futuro sócio Steve Wozniak. Juntos criaram, em 1975, o primeiro computador da companhia, o Apple I, produzido na garagem dos pais de Steve Jobs. A partir daí, a Apple mudou a maneira de as pessoas se relacionarem com a comunicação e a tecnologia.
          A maçã mordida – com atraente alusão à tentação e ao desejo seduzido – marcava os produtos da Apple. E os mesmos mexiam irresistivelmente com as pulsões e desejos dos milhões de consumidores que diariamente usavam o Iphone, escutavam música no Ipod e acariciavam deleitados com seus dedos a tela do tablet Ipad.
          A um gênio se admira, a inteligência e a criatividade se respeita e se reconhece. Mas o que surpreende é a reação das pessoas diante da morte de Steve Jobs. Velas são acesas diante das lojas da Apple em várias partes do mundo. Pessoas as mais variadas, em lágrimas, comparam-no a grandes figuras da história, como John F. Kennedy e John Lennon. Mensagens amorosas são escritas e dirigidas ao ilustre morto, juntamente com flores. Abate-se uma orfandade tremenda sobre esta sociedade de consumo pós-moderna, que sentiu seus impulsos estimulados e satisfeitos com as criações de Steve Jobs.
          De Bill Gates – seu adversário, presidente da Microsoft – a Barack Obama – presidente dos Estados Unidos – , das mídias às redes sociais, todos só têm palavras laudatórias ao gênio Steve Jobs, chamado de audaz, ousado, visionário e outras coisas mais panegíricas ainda. Chamam-no inclusive do novo Thomas Alva Edison, inventor da eletricidade.
          Diante deste fenômeno, me pergunto se a humanidade não terá perdido um pouco o prumo e a capacidade de análise e avaliação. Que Steve Jobs seja um gênio dentro do campo de trabalho que escolheu e ao qual dedicou a vida e no qual fez fortuna, nenhuma dúvida Que o legado que deixou tenha feito a humanidade crescer e tornar-se mais digna…já matizaria mais minha resposta.
          Seu grande feito foi transformar algo não imprescindível nem necessário para a vida em objeto de desejo alucinante. As pessoas que poderiam viver sem aquilo passaram a perguntar-se como conseguiram fazê-lo até então. O produto do qual não imaginavam precisar passou a ser tão necessário para suas vidas como o ar ou a água. Esses milhões de pessoas vararam madrugadas em filas gigantescas de várias “black Fridays” mundo afora, ansiando freneticamente tocar com suas mãos uma das criações de Steve Jobs.
          Definitivamente não estamos diante de um santo ou um herói. A vida de Jobs é preciosa como a de todo ser humano. Mas o que sua morte deixa como legado maior é a revelação do fato de que a humanidade se encontra absolutamente carente de heróis ou figuras ilustres em quem depositar seu potencial afetivo e admirativo. E por isso cria ídolos e fabrica ícones neles projetando seus desejos e frustrações. O mito da era virtual é apenas um homem extremamente inteligente e criativo. Nada mais.
          Para ser guia e inspirador da humanidade, como parecem querer que seja, é preciso mais do que inventar charmosos e sedutores artefatos virtuais e colocá-los nas mãos carentes de milhões de consumidores. Como dizia Bertolt Brecht, no fragmento parafraseado no começo desta crônica, é preciso lutar a vida inteira. Só os que fazem isso são realmente imprescindíveis.
*Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).

Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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