Onipotência e Delírio
Li em algum lugar que o filme “Desejo e Reparação” trata da literatura como instrumento possível de reparação.
O título original “Atonement” tem mais a ver com expiação, que quer dizer cumprir a pena, remir a culpa. Reparar, por outro lado, quer dizer restaurar.
No filme em questão, excelente, do ponto de vista técnico, derivado de um livro do qual não posso falar, já que não li, mas que quase posso afirmar que segue um padrão literário desses que garante certo ritmo promotor do envolvimento do leitor com a história, a questão da culpa e da possibilidade de expiação é tratada de tal forma, que nos deixa a liberdade de arriscar expor nossa própria opinião.
Para mim, a autora, já idosa, ao escrever aquela história autobiográfica, com um final feliz, refazendo, como sempre fez (desde a infância) a realidade, está apenas reforçando seu delírio de onipotência. Pode ser até uma tentativa (vã) de se redimir da responsabilidade de ter destroçado vidas, mas não chega de forma alguma a ser reparação. Até porque é impossível reparar alguma coisa que se destruiu para sempre.
Voltando ao primeiro parágrafo deste texto, e à alusão de que essa função, reparadora, possa ser atributo da literatura, discordo mais uma vez. Talvez se possa pensar a linguagem como instrumento de reconstrução. Mas, mesmo assim, o efeito seria subjetivo e o processo interno até lá, bastante trabalhoso, como em toda boa reconstrução, aliás. Naquela história, o sofrimento que a mulher se impõe, tornando-se enfermeira na guerra, é mais uma forma de imitar os passos da irmã, a quem ela passou a vida invejando e tentando controlar. Não há, de fato, elaboração da culpa. Só atuação.
Embora o filme não chegasse a me emocionar, devo confessar, afinal, que apenas o fato de me fazer pensar em tudo isso, lhe atesta algum valor mais significativo.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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