Não faz muito tempo, no Shopping Recife, um manequim, com formas femininas, despojado de qualquer veste, me chamou à atenção, pelo relevo ostentado. Por alguns minutos, parei para melhor contemplá-lo(as). A perfeição era tanta que se lhe fossem colocados cabeça, braços e pernas, poderia sair caminhando, que ninguém desconfiaria de sua condição de manequim, e, aliás, até pararia para melhor apreciá-lo(a).
          Agora, em centros comerciais outros, em Paris, Barcelona e Lisboa, fui mais além na observação de manequins de diversas latitudes, quer completos, e, neste caso, a fisionomia tão real que a gente lhe sente a alegria e/ou tristeza que ostenta no olhar, se fincados em outro lugar da loja, passariam por pessoas reais; quer incompletos, isto é, sem cabeça, braços e pernas. E lá estavam manequins pintados de vermelho, ou amarronzados com manchas entre o amarelo e o branco, em pé, em atitude de quem encara algum ponto, ou sentados, de pernas abertas, corpo curvado, como se estivessem presos a alguma reflexão mais demorada, como ainda vestidos e nus, e, nesse caso, as formas sexuais sempre insinuadas.
          Vendo esse mundo novo, que atrai o freguês pelas formas, na imitação da realidade humana, me veio a lembrança dos manequins que via nas alfaiatarias de Itabaiana, manequins incompletos, só o busto, que eram utilizados para guardar a roupa ainda não costurada, a espera que o dono da camisa ou do paletó por lá aparecesse para a prova dos nove. Não havia uma alfaiataria que não tivesse, pelo menos, dois manequins. Mas, os que via, naqueles idos, traziam a marca da deterioração dos tempos, expondo um branco acentuado, como se fosse feito do giz que a gente utilizava, na escola, ante o quadro negro. E o branco parecia ser proveniente de uma ferida que comeu aquela parte e passava a expor, para sempre, as suas alvas vísceras.
          Mas, uma coisa é o manequim de alfaiataria e outra é o de loja. O primeiro é o depositário da camisa/paletó antes da prova, não trazendo nada de atrativo, nem de verdadeiro; o segundo, ostenta a roupa que a loja deseja vender, procurando o homem fazê-lo a sua imagem, para, cada vez mais, lhe conferir um ar de autenticidade. É o chamariz, com fins de atrair o freguês. Pois sim.
          O primeiro manequim, desta forma, que apareceu no comércio de Itabaiana, salvo engano de memória, foi na Loja Siqueira, se apresentava com todas as vestes, de maneira que não despertava maiores comentários da população que o via. Digamos, era um manequim ajuizado. Chuto para o final da década de sessenta do século passado. Mas, o segundo, na loja de Neuza Melo, à Rua Treze de Maio, exibia um biquíni, se a lembrança não falha, o manequim trazia as pernas bem arqueadas e os braços levantados, como se estivesse pronto para caminhar, faltando apenas receber a ordem devida.
          Causou um sério rebuliço na cabeça daquele senhor, lavrador aposentado, residindo com a sua velhice na urbe itabaianense, que, ao passar pela frente da loja, parava e ficava a olhar o manequim e a xingá-lo, simultaneamente, como se aquilo fosse um retrato de impureza e safadeza, uma mulher, assim, com trajes tão miúdos, a se exibir, em público. Mas, o desconhecido senhor xingava e apreciava, apreciava e xingava, e na calçada, nos seus impropérios, por muito tempo, permanecia. A boca a despejar palavrões ao manequim, e os olhos, bem, os olhos de menino chimão, a se deslumbrar com a paisagem que o manequim exibia, talvez a matar a saudade de velhos tempos, ou, quem sabe lá, a se lastimar pelo que deixou de presenciar. O mais não sei, porque o fato aqui termina, infelizmente, a retratar a contradição do homem, e o mais não sei, nem me arrisco a qualquer palpite e palavra.
Publicado no Correio de Sergipe
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]