Confessamos, como católicos, ser a eucaristia “fonte e centro de toda a vida cristã”. E, contudo, a afirmação de nossos lábios não consegue ser traduzida para nossas vidas. O crido não se torna vivido. O que sem dúvida desacredita, não o sacramento, mas a nossa confissão. Podemos nos perguntar: porque experimentamos hoje tal dificuldade, quais as causas históricas ou teológicas que separaram a eucaristia da vida cotidiana, como uma celebração gratificante pode se tornar uma obrigação eclesial, de onde brota esta tendência de assemelhar a celebração eucarística a shows televisivos ou a espetáculos emotivos?
Podemos também deixar falar o coração da Igreja, auscultar suas pulsações e seus anseios pela comunhão eucarística, sua alegria quando recebida em momentos significativos da vida, sua frustração quando impedida de se realizar. Tais sentimentos nascem da mesma fonte que lança as questões acima expressas.
1. A realidade sacramental. Nossa fé se dirige a Alguém que ultrapassa nossas categorias familiares. De fato, cremos em Deus que é mistério para o ser humano, por sua transcendência e sua infinitude. Ao confessar Jesus Cristo, acolhemos em sua pessoa a revelação de que este Deus é Pai e quer nossa salvação. Mais ainda, nos criou com este desígnio: sermos seus filhos entrando para a felicidade eterna da família trinitária. Para isto nos envia seu Espírito que nos possibilita investir nossa vida em Jesus Cristo e assim chegarmos, como Ele, ao Pai. Este Espírito, que sopra onde quer, que nos desconserta e surpreende, fonte de liberdade e de novidade, também não se deixa prender em nosso conceito.
Igualmente a pessoa de Jesus Cristo, embora tenha vivido em nossa história, constitui um mistério para nós. Cristologia alguma será capaz de explicá-lo, fato comprovado pela sucessão ininterrupta de tentativas de fazer entrar sua pessoa e sua vida numa sistematização, todas parciais e imperfeitas por mais geniais que tenham sido. O mistério salvífico próprio da pessoa de Jesus Cristo, gritante na formulação tradicional de “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, se estende para todos os momentos de sua vida que podem ser autenticamente caracterizados como “mistérios da vida de Jesus Cristo”. Ultrapassando nossas capacidades naturais só podem ser conhecidos pela fé, dom de Deus aos que crêem e, portanto, graça de Deus a ser pedida cada vez que nos debruçamos sobre um evento salvífico da história de Jesus. O que não passou despercebido a Santo Inácio, que faz o exercitante pedir em todas as contemplações “o conhecimento interno do Senhor, que por mim se fez homem, para mais ama-lO e segui-lO” (EE 104).
2. O cristianismo como realidade sacramental. Portanto, no cristianismo, todos os episódios que constituem sua base histórica não se desvelam enquanto fatos, não se justificam em sua realidade histórica, não se constituem como auto-explicativos, não revelam em si sua verdade profunda. Apenas assinalam o mistério salvífico de Deus, tornando-o visível e atuante, fazendo o transcendente emergir na história e o divino transparecer no humano. Neste momento há o risco de desfigurarmos o mistério, sujeitando-o a uma compreensão dentro dos limites da razão, a uma leitura com categorias inadequadas ou a uma interpretação redutora e meramente humana. O que, infelizmente, sucedeu, como nos comprova a história do cristianismo.
Neste ponto já podemos entender porque todas as realidades que constituem a religião cristã são de cunho sacramental. Nelas Deus deixou sua marca, nelas Deus revelou sua vontade, nelas Deus abriu seu coração, nelas Deus continua presente, nelas Deus prossegue sua ação salvífica, nelas Deus se nos faz acessível, nelas Deus nos fala, fortifica, ilumina, pacifica, alegra e santifica. São realidades que pedem que as ultrapassemos para poder captá-las em sua verdade.
A fé nos faz dar este passo, fruto da graça do próprio Deus em nós. Não é o que fazemos ao ler ou ouvir as palavras humanas da Bíblia como Palavras de Deus? Não é o que se dá quando consideramos esta instituição histórica chamada Igreja como sacramento universal de salvação,Povo de Deus, Corpo de Cristo e templo do Espírito Santo? Não é o que acontece quando participamos conscientemente das celebrações sacramentais, ultrapassando o que nossos olhos nos mostram de elementos materiais como a água, o óleo, o pão e o vinho, ou o que nossos ouvidos ouvem das palavras sobre eles proferidas?
Só este simples fato de estarmos lidando com realidades sui-generis, que reenviam para além de si mesmas, pede de nós uma postura também específica. De fato, só a atitude de profunda fé nos faz acessível o mistério sinalizado, seja ele um texto bíblico, a pessoa de Cristo ou uma celebração sacramental. Sobretudo com relação aos sacramentos não é fácil ir além do que nos expõem os sentidos. Para termos um autêntico encontro com Deus faz-se mister, o silêncio interior e o olhar da fé. E nem sempre conseguimos manter esta tensão entre o visível e o invisível, o humano e o divino, o histórico e o eterno, a expressão e o significado, a celebração e o mistério salvífico.
Corremos então grande perigo de cairmos no formalismo ou no “rubricismo”, de nos satisfazermos com a performance externa, de apenas obedecermos a um mandamento da Igreja, ou de instrumentalizarmos a celebração sacramental para outras finalidades. Não provém daqui grande parte da desafeição pela eucaristia, mesmo que reconheçamos a urgência de uma atualização da linguagem e de uma inculturação dos gestos? Observa-se também que muitos só começam a entender e valorizar este sacramento por terem tido experiências de celebrações eucarísticas durante retiros espirituais, quando a intensa vivência da fé proporcionou a postura requerida para uma adequada celebração.
3. Sacramentos do Reino de Deus. Qual é este mistério salvífico, cuja presença e atuação, por pertencer à esfera de Deus, só se faz perceptível através do sinal (sacramento)? Tudo o que dele podemos falar tem sua fonte em Jesus Cristo, única revelação definitiva e completa de Deus. Este Jesus Cristo fez irromper o Reino de Deus em sua pessoa e nos pede que leiamos todas as suas palavras e ações na perspectiva do Reino de Deus já anunciado outrora pelos profetas. Porque ao terminar de ler, na sinagoga de Nazaré, o texto de Isaías que descrevia a realidade do Reino, Jesus proclamou: “Hoje, esta escritura se realizou para vós que a ouvis” (Lc 4,21). Assim não mais podemos conhecer Jesus Cristo sem o Reino, não mais podemos captar o Reino de Deus sem Jesus.
Este atuar de Deus na história, que constitui o núcleo de toda a Bíblia, se tornou visível nas ações de Jesus de Nazaré, justificadas por suas palavras, sendo que ambas nos revelam um Deus que acolhe e ama todos os seres humanos de modo incondicionado, pedindo que O acolhamos em seu gesto como o absoluto de nossas vidas, nele ancorando nossa liberdade de tal modo que, livres por relativizarmos o que não é Deus, possamos então levar a sério nosso semelhante, sobretudo o mais necessitado, e verdadeiramente amá-lo. Cada vez que acolhemos a oferta salvífica de Deus feita em Jesus Cristo acontece o Reino de Deus na história, embora na nossa fragilidade e imperfeição, pois sua plenitude só se dará na outra vida.
Para Jesus Cristo o acontecer do Reino de Deus foi toda a sua vida, como vimos anteriormente: uma vida de entrega ao Pai e de amor a seus semelhantes. Entretanto sua existência humana provocou conflitos com seus contemporâneos, que a viram como uma ameaça a ser afastada. Deste modo sua vida pelos outros, que assinalava e realizava o Reino de Deus na história, desembocou em sua paixão e morte de cruz. Deus acolheu esta existência ressuscitando-o dos mortos, sentando-o a sua direita, glorificando-o para sempre. Assim se deu a passagem de Jesus Cristo para o Pai, passagem esta que chamamos de “mistério pascal” e que é tão bem expressa por São Paulo.
4. O mistério pascal e nós cristãos. Para nós cristãos é prometido o mesmo destino de Jesus Cristo, se realmente procuramos assumir sua existência, tendo Deus como valor supremo e nos sensibilizando por nossos semelhantes. Conseguimos isto, não com nossas pobres forças, mas ajudados pelo Espírito Santo, que é a garantia da nossa ressurreição e da nossa eternidade feliz. Deste modo o mistério salvífico cristão, o mistério pascal, é também o centro de nossa vida, o sentido último de nossa existência histórica, o cerne de nossa fé, o conteúdo de nossas experiências salvíficas, a orientação última que damos a nossa vida, o que expressamos em nossas preces e visibilizamos nos sacramentos. Mais ainda. Estamos continuamente deixando transparecer no nosso dia a dia este mistério salvífico, este Reino de Deus acontecendo, desde que estejamos agindo conforme nos ensinou Cristo. Tais ações, brotadas do espírito evangélico, são também sacramentos, embora, muitas vezes, anônimos e desapercebidos por se assemelharem às demais ações humanas, postas com outras intenções.
A Igreja reconhece algumas ocasiões significativas na vida do ser humano, nas quais este mistério salvífico se faz visível e atual, caracterizando assim os chamados sete sacramentos. É fundamental ter presente que todos eles assinalam o mesmo mistério salvífico, todos tornam visível o acontecer do Reino de Deus e todos expressam nossa adesão a Cristo por nossa orientação fundamental semelhante a sua. Destes sacramentos, sem dúvida, o mais importante é a eucaristia.
5. O sacramento da eucaristia. Tudo teve início na última ceia quando Jesus, aproveitando um dado cultural e religioso de seu povo, põe-se à mesa com seus doze apóstolos para uma refeição derradeira, antes de sua paixão e morte de cruz. Uma refeição em comum já implicava certa comunhão entre seus participantes e era mesmo utilizada para representar o Reino de Deus pleno e definitivo. As palavras que acompanham a oferta do pão e do vinho acrescentam ainda um novo sentido a esta refeição. Pois delas pode-se inferir que Jesus expressa na entrega do pão e do vinho, feita por Ele mesmo, a entrega de toda a sua vida, ao Pai e à humanidade. Pois corpo e sangue para a mentalidade semita implicam toda a pessoa, toda a sua vida, toda a sua história.
Como esta ceia sucedeu na época da solenidade da páscoa dos judeus, esta entrega de Jesus aparece como a entrega da vida de um novo cordeiro pascal, simbolizando na ceia o que aconteceria horas mais tarde no Gólgota: a entrega definitiva da vida para a salvação da humanidade. “Tomai e comei; isto é meu corpo entregue por vós”. “Tomai e bebei este é meu sangue derramado por vós”. Assim intencionalmente querida por Jesus esta refeição aponta o coração de toda sua existência, o sentido último de sua vida, o mais íntimo de sua pessoa. Fazia-se mister que os cristãos não se prendessem a um ponto mais secundário de sua história. Daí a clarividência da comunidade primitiva ao transmitir o preceito: “Fazei isto em memória de mim”. E como esta entrega desemboca na ressurreição, a saber, chega a seu cume na entrega eterna ao Pai, há também a alusão a esta ceia (leia-se felicidade) definitiva junto de Deus. “Eu vos digo: doravante não beberei deste fruto da videira até o dia em que o beber, de novo, convosco no Reino do meu Pai”.
6. A celebração na Igreja primitiva . Os primeiros cristãos vão então aproveitar as reuniões da comunidade para uma ceia em comum, com partilha de alimentos e de bens, com a participação de todos no corpo e sangue do Senhor. Toda esta refeição em comum enfatiza o sentido da última ceia e conscientiza os participantes de que constituem uma única comunidade, um único corpo de Cristo, pois a comunhão com o corpo e sangue do Senhor implica também a comunhão entre si. “Todos nós somos um só corpo, porque participamos deste pão único” (1 Cor 10,17). E se fossemos perguntar porque isto pôde ser afirmado teríamos que remontar do nível sacramental (refeição em comum, última ceia) para o nível existencial. A eucaristia assinala a entrega real e histórica de Jesus Cristo e também a nossa entrega real e histórica. Com outras palavras, expressa e visibiliza o gesto salvífico de Deus plenamente acolhido por Jesus ao longo de sua história e imperfeitamente acolhido por nós no decurso da nossa. Se esta fidelidade ao Pai constituiu a identidade histórica de Jesus Cristo, eternizada com sua ressurreição, também constitui nossa identidade, histórica porque construída ao longo de nossa existência, e eternizada porque irá desembocar na nossa ressurreição, na vida eterna com Deus.
O comer do mesmo pão e o beber do mesmo cálice (símbolos da entrega) requerem uma entrega real de nossa parte, uma vida plasmada na de Cristo, numa palavra, uma existência crística. Assim na eucaristia celebramos não só a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mas também nossa vida, paixão, morte e ressurreição, por procurarmos, embora imperfeitamente, fazer de sua identidade também a nossa, como tão bem expressou Paulo: “para mim, viver é Cristo”. Uma celebração eucarística onde falte esta entrega por parte dos participantes é uma contradição, da qual São Paulo manifestou lúcida consciência. Se uns se saciam enquanto outros passam fome, que sentido tem celebrar a ceia do Senhor? Será que os participantes sabiam o que era a ceia eucarística? Que ela pressupunha uma existência crística, uma caridade fraterna, uma partilha dos alimentos com os necessitados? Se não houvesse isso o que afinal estaria sendo assinalado pelo sacramento? Daí a indignação de Paulo: “Examine-se cada um a si mesmo, antes de comer deste pão e beber deste cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe a própria condenação”. Com outras palavras, o apóstolo dos gentios está enfatizando aos coríntios que a eucaristia é um sacramento do Reino de Deus, uma expressão do mistério pascal, um sinal unívoco da existência cristã. Para sua verdade plena faz-se mister, além do gesto salvífico de Deus, a acolhida, igualmente salvífica, do ser humano, através de uma vida pautada pelo Evangelho.
Entretanto, por razões práticas, a refeição em comum foi substituída pela escuta da Palavra em comum, embora se mantivesse a exigência da comunhão fraterna. A presença de Cristo ressuscitado é explicada pela própria ação eucarística: enquanto contemplada e acolhida na fé pela comunidade, a memória (anamnese) do gesto histórico de Cristo (última ceia) torna-o realmente presente e atuante em meio aos participantes. Presença esta que enlaça a refeição em comum do mesmo corpo de Cristo e a celebração da mesma entrega de Cristo e dos cristãos, tudo realizado por iniciativa de Cristo Ressuscitado, que convoca, preside e celebra o memorial de sua entrega ao Pai e a nós, à qual nos aderimos como cristãos e, assim com Ele, podemos celebrar nossa entrega.
7. Mudanças históricas. Contudo esta vivência eucarística da época patrística, apesar de seu enorme valor por saber manter numa visão unitária as diversas dimensões deste sacramento, irá sofrer transformações que a empobreceram e, em parte, desfiguraram. O novo contexto sócio-cultural da Idade Média, marcado pelo advento da filosofia aristotélica, acabará fazendo sucumbir a compreensão da eucaristia a uma preocupação unilateral de cunho realista e ontológico. Daí nasceram as discussões sobre a presença real de Jesus no sacramento do altar, daí o empobrecimento da leitura escolástica da ceia, daí a perda da tensão evento-imagem, tempo-eternidade, sacramento-sacrifício, daí igualmente o desaparecimento do dinamismo da ação sacramental. Tudo irá girar em torno do binômio substancia e acidentes.
Com isto cai a participação plena dos fiéis neste sacramento, perde-se a idéia da anamnese, afirma-se que Cristo é de novo sacrificado em cada missa, embora de modo incruento, separa-se sacramento e sacrifício, concentra-se a atenção na hóstia, acentua-se o ritualismo (rubricas), cria-se a expressão “transubstanciação”. Os reformadores rejeitam corretamente a concepção corrente de novo sacrifício, mas divergem entre si sobre a presença real. O Concílio de Trento corrige a idéia do sacrifício de Cristo na eucaristia (representação do único sacrifício da cruz) e afirma a presença real, dando um sentido mais amplo ao termo de transubstanciação. O Concílio Vaticano II volta à concepção patrística da eucaristia enfatizando a ceia, a memória, a Palavra de Deus, o sacrifício numa compreensão ampla, a presença real, inserida entre outras presenças, também verdadeiras, de Cristo Ressuscitado em sua Igreja: no ministro que preside, nas espécies eucarísticas, nos sacramentos em geral, na Palavra proclamada, na Igreja que ora (SC 7).
8. Dificuldades na compreensão da eucaristia. Não é fácil sistematizar toda a riqueza teológica presente na celebração eucarística. E dificilmente poderemos vive-la em sua plenitude cada vez que dela participamos. Principal obstáculo é nossa própria compreensão da eucaristia, constituída também de elementos unilaterais que a desfiguram e agravada por vir acompanhada de práticas tradicionais do catolicismo, agregadas ao sacramento no curso da sua história por força de diversas circunstâncias, até compreensíveis. Desde a expressão “assistir à Missa” que exprime uma asneira teológica até o caráter de obrigatoriedade externa para o que deveria brotar de dentro de uma fé vivida, passando pelo absurdo de utilizar a eucaristia como simples ato social, desconhecida em seu sentido profundo pela maioria dos presentes, tudo isto dificulta a autêntica compreensão e vivência deste sacramento.
9. A educação da postura. Temos que ter humildade e voltar a educar nosso olhar de fé antes de participarmos da ceia do Senhor. E na agitação e no estresse da vida atual isto pode requerer reeducação da atenção, do silêncio interior, do sentido profundo da celebração, da correção na postura corporal, que deveria não se limitar a cada um de nós, mas atingir toda a comunidade. Ela última deveria ser a educadora da atitude requerida para a participação significativa na eucaristia. Vale aqui o “pôr-se na presença de Deus” que Santo Inácio nos pede antes da oração, e que implica ruptura com o que antecedeu e que constituiu o nosso cotidiano.
Só assim seremos capazes de entrar na realidade sacramental, que nos remete para além do que vêem nossos olhos e ouvem nossos ouvidos. Trata-se da memória da entrega da sua vida por parte de Jesus Cristo, e que nos afeta inevitavelmente, pois somos cristãos que procuram viver a mesma entrega. Unimo-nos existencialmente à entrega de Jesus Cristo Ressuscitado, entrega esta que é sempre atual, pois constitui eternamente sua própria identidade e se torna presente para nós ao recordarmos na fé a celebração desta entrega na última ceia.
10. Cristo Ressuscitado e nós. É fundamental que não nos preocupemos com o modo de Jesus Cristo estar presente no pão e no vinho. Nossa atenção deveria convergir para a grande verdade de que Ele aí está para nós. É o Ressuscitado, o Reino definitivo, a felicidade eterna, o nosso futuro último, o sonho realizado da convivência humana, da realização plena do amor fraterno, da paz perene com Deus, é tudo isso que vem ao encontro da nossa fragilidade, da nossa inconstância, da nossa incoerência, das nossas dúvidas e medos, das nossas tristezas e desânimos, para nos alimentar e fortificar, nos pacificar e alegrar, nos orientar e iluminar. É um saborear antecipado do que nos espera, fortalecendo nossa esperança na sua nova vinda e levando-nos a pedir: vem Senhor (maranatha)!
11. A presença atuante do Espírito. Tudo isto só acontece no interior da fé vivida, fruto do Espírito Santo, presente também na celebração eucarística ao trazer os fiéis à Igreja, ao santificá-los juntamente com as ofertas do pão e do vinho, em resposta à súplica da comunidade cristã (epiclese). O que sempre foi enfatizado pelos cristãos do oriente. É o mesmo Espírito que nos inspira a atitude mais própria que podemos ter diante de um Deus que entregou seu Filho por nós: a atitude de ação de graças por tudo o que dele recebemos. Aqui alcançamos o que o termo “eucaristia” significa propriamente.
12. Nossa participação. Tudo nesta celebração nos leva a tomarmos consciência da nossa identidade cristã, conhecer melhor sua realidade, procurar vivê-la com maior coerência, encontrar nela sentido e paz, força e alegria. A celebração da Palavra nos fala de Cristo e, portanto, nos interpela como cristãos (seguidores de Cristo). A consagração nos traz Cristo Ressuscitado recordando sua entrega por nós, o sentido de sua vida, e nos recordando também o sentido da nossa. A comunhão expressa visível e socialmente nossa comunhão com Cristo e nossa comunhão com os demais participantes, pois comungamos o corpo (vida) de Cristo para mais plenamente vivermos sua entrega.
Nossa atual compreensão da eucaristia pressupõe, como vimos, uma ligação muito maior entre vida e celebração. Celebramos a vida (toda a história) de Jesus Cristo e também a nossa vida. No fundo somos todos celebrantes, estamos todos envolvidos em torno do que constitui a “fonte e o centro de toda a vida cristã” (LG 11). A fecundidade da nossa comunhão eucarística depende da autenticidade de nossa comunhão vivida com Cristo e com nossos semelhantes em nosso dia a dia.
13. Experiência salvífica e eucaristia. Sempre me intrigou o fato de que poucas pessoas tenham experimentado na eucaristia um encontro pessoal com Cristo Ressuscitado. Talvez tenha ocorrido em outros momentos, talvez com a Igreja vazia e silenciosa, ou por ocasião de determinadas ocorrências na própria existência. Do que vimos até aqui tudo na celebração deveria nos levar a uma experiência de Deus, a um encontro muito pessoal com Cristo, a uma acolhida bem existencial do Espírito. Mas, não é isto que constatamos em nossas Igrejas. Será a preocupação com a apresentação da liturgia eucarística, com as leituras, com os cantos e com os avisos, que exclui em nós tal experiência? Encontramos até certa resistência por parte de alguns fiéis em ter momentos de silêncio, significativo e denso, no interior da própria celebração. Abortam assim os momentos que deixariam aflorar a dimensão mística da nossa fé, que confirmariam existencialmente nossa comunhão com Cristo. A ação generosa do Espírito, presente e atuante no curso da ação litúrgica, não consegue se tornar fecunda, simplesmente porque não lhe damos espaço para tal. Há aqui toda uma tarefa reservada à pastoral deste sacramento.
14. Eucaristia e Exercícios Espirituais. Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio esta contemplação da eucaristia se encontra na terceira semana, após a eleição já amadurecida e realizada ao longo da segunda semana. A eleição significa, em última instância, um acolhimento do que Deus quer de nós em vista de uma entrega mais autêntica, iluminada pelos mistérios da vida de Cristo. Por outro lado o que implica esta entrega está já contido na última ceia do Senhor, voltada para sua paixão, morte de cruz e ressurreição, precisamente a matéria da terceira e quarta semanas do retiro inaciano. Assim a contemplação eucarística recebe um lugar de peso no decorrer dos Exercícios, o que não deveria deixar de ser devidamente valorizado.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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