Os tempos sempre foram de aperto: roupa nova só no final do ano, precisamente no mês de dezembro. Adquirido o tecido, mamãe se encarregava de costurar as camisas, e, no alfaiate, de preferência o que cobrava menos, fazíamos as calças. Ao todo, duas camisas e duas calças. Quando se cuidava de Vale Zero (seria esse mesmo o nome, ou seria Volta ao Mundo?), a gente escapava do suplício da prova, onde a paciência de mamãe, com seus alfinetes, batia na pressa que tinha de me livrar logo da camisa ainda em armação.
          Tudo era matematicamente planejado. Uma camisa e uma calça seriam usadas na feirinha do Natal. Outra dupla, isto é, a melhor, na de ano novo. Na de reis, se repetia a de Natal. Todo o ano a mesma coisa, a alegria da roupa nova que o dezembro anunciava. Na procissão de Santo Antonio, uma dessas roupas era utilizada, como saiam as melhores do guarda-roupa em toda viagem para Aracaju, além dos domingos, à tarde, no passeio, pelas mãos de papai, até certo momento, na Praça da Matriz.
          Com uma camisa Vale Zero (se o nome não for esse, o leitor, corrigindo, me perdoará), apareço em três fotografias, no final do longínquo ano de 1959. Estou a receber as provas no Educandário Nossa Menina, das mãos da professora Maria Menezes Santos. Com a mesma roupa, apareço numa foto no estúdio de Ciro Moreira, ao lado de uma prima. E, por fim, uma três por quatro, foto oiti, como se denominava, à época, em Aracaju, destinado a carteirinha do IAPC, do qual papai era segurado. São as únicas fotos do tempo em que tinha nove anos, de maneira que a camisa e a calça, ali trajadas, se tornam presentes no meu cotidiano de manusear velhas fotografias.
          Nas pouquíssimas fotos da infância, há uma, datada, talvez, de 1955 ou 1956, em que estamos eu, Alba, Bosco e um primo, Bibinha, que passava uns dias na casa de vovó Brasília, ao seu lado, na calçada de sua casa. É uma foto pequena, como quase todas as que não eram de estúdio, e, ademais, para caber todo mundo, o fotógrafo ficava de longe, o que diminuía mais o nosso tamanho. Para ver hoje as fisionomias, uso uma lente de aumento. A cena é profundamente característica, porque nos surpreende com as roupas usadas no dia a dia das manhãs, a demonstrar a simplicidade e pobreza dos nossos trajes, de forma que aqui não falto com a verdade.
          A vida era assim e ninguém reclamava de nada, principalmente eu, que, como mais novo da casa, costumava herdar as roupas de Bosco, quando não serviam mais para ele, o que não era tão comum, já que as usávamos até que os remendos permitissem. Mas, quando calhava de herdar, meu guarda-roupa simbólico aumentava e, pelo menos, nos primeiros dias, achava tudo aquilo extraordinamente grandioso.
          Antonio Oliveira, sempre saudoso, mais velho que eu vinte e seis anos, costumava dizer que, na Itabaiana do seu tempo, todos eram remediados, ou seja, todo mundo era pobre, tendo apenas para o alimento, que não faltava. É mais ou menos a Itabaiana também dos meus tempos, realidade que não nos causava nenhum dano psíquico, mas, ao contrário, nos estimulava a encarar o futuro com a espada dos estudos. E foi visando a obter a independência econômica que me matei nos livros. Bom, independência que abria as portas para outras coisas, que… não fica bem revelar em artigo de jornal.
Publicado no Correio de Sergipe
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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