Às vezes, em noites bem escuras, tais quais as que se dão – e mesmo se doam – quando estamos fora da cidade, olhamos para o céu com o único intuito de visualizar outras galáxias e ter novos pensamentos. Nesses instantes, nada, senão o sentimento da humildade, é que, sem delongas, povoa-nos todo o recheio do crânio e, de logo, impõe-se o mais temível dos corolários: este planeta Terra é pequeníssimo e, em certas escalas de proporcionalidade, fica assim minúsculo, como o ponto final que encerra este parágrafo.
          Na juventude, sempre pensei nestes termos: somos quase nada diante da grandiosidade do universo e, assim, esta idéia de nossa insignificância cosmológica realmente me era algo tão impressionante que se me apresentava com aspectos de terror. Ora, as estrelas nunca me emitiram sinfonias cintilantes – como parecem fazer quanto aos poetas -, mas um burburinho horríssono que não me permitia esquecer que nós, seres humanos, não passamos de argueiros, grânulos ou, se preferem, poeiras diante do Cosmos.
          Depois da juventude, paradoxalmente, embora os anos, com algum esforço, me tenham imprimido certos quês, mas não tantos, de maturidade, olhar para as galáxias já não me provocava a emoção de outrora. Envelhecia e, de certa forma, assim como quem lê um poema e o descreve como tinta sobre papel, as luzes do Cosmos passaram a ser para mim semelhantes àquelas do escritório ou da sala de jantar: simples e tristes agrupamentos de fótons, de cujas funções e ainda com muito boa vontade, destacava-se a de manter viva a insistência de afastar a noite sem os inconvenientes do dia.
                Tristes perspectivas as que obstinadamente me martelavam o princípio da identidade, o mais sensabor de todos os três da 1ógica ortodoxa. Um fóton é um fóton; uma estrela é uma estrela; um ser humano é um ser humano… E eu?! Quem sou?! É que me faltava a perturbação do pensamento, a insurreição dos conceitos, a liberdade de saber que, no jogo das coisas importantes – há coisas importantes! -, o todo pode mesmo ser menor do que a parte, dependendo das semânticas subversivas que imprimimos ao mundo, ao nosso mundo. Aqui, no aspecto subversivo, jaz a arte.
           A arte é, em certa medida, a expressão da subversão, pois tenta, mesmo que malsucedidamente, fazer da simples pincelada a afônica voz que, em silencioso desespero, procura a todo custo bramir o indizível. O que importa é a tentativa. O que importa é o espanto. Diante do mundo inteiro e de cada pequena coisa, há escondidos um mistério e uma incógnita para serem apreciados, pintados, representados, mesmo que nunca se consiga expressar o espanto que verdadeiramente se sentiu diante do mundo contemplado.
          O mister do artista – o que genuinamente vive a arte – é, portanto, uma atividade solitária que inutilmente quer ser coletiva, pois morre no fracasso de tentar transpor a barreira da impossibilidade, que é dizer o que a linguagem tristemente não consegue dar conta. O que, senão isso, teria sido o que Allan Poe tentou mostrar – e, sintomaticamente, não utilizei “dizer” – em seu poema Alone? Ora, em lugar da resposta, segue outro questionamento: que condenação será mais medonha do que a de se querer fazer o que nunca poderá ser feito?
          O corvo de Poe – do Poe de outro poema: The Raven – passa a gritar em tom bem mais agudo e estabelece desde logo a sina do artista: “nunca jamais”, pois o que verdadeiramente importa não é apreendido pela linguagem, de forma que ao artista resta dedicar-se por toda a vida a uma tarefa irrealizável, sabendo que o prazer não poderá estar na conquista, mas apenas no processo da tentativa.
          Quando muito, deve o artista se auto-esquizofrenizar artisticamente, para que, trazendo tudo o que existe para dentro de si, possa tomar-se, mesmo que individualmente, o mundo inteiro. Assim, ao tentar comunicar o mundo, o artista comunicará a sua alma, dando a impressão – simples impressão – de que conseguiu subverter a impossibilidade de comunicar o incomunicável. Somente assim, não abandonará a Terra, senão por quase sempre, tal como aquele que enfrentou a terceira margem do rio.
          Neste ponto – no da esquizofrenia artística -, penso que Deus não mais tirará dele a capacidade de se maravilhar com a vida e, portanto, de se tornar quem realmente é: um obstinado em buscar o inalcançável, tendo prazer nas procuras, nas tentativas necessariamente fracassadas, em que as noites escuras, com suas galáxias e mistérios, dirão toda a verdade para o artista, que nunca conseguirá dizer o que ouviu… Serão sempre verdades profundas e silenciosas. Os artistas são, nesses termos, os seres que foram por toda vida condenados ao silêncio de sua arte, mesmo que, aqui, se trate de um silêncio que grita.
* Tassos Lycurgo é professor da UFRN
Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco.
Ilustração de José Veríssimo criada especialmente para o ensaio.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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