Foi uma grata surpresa. O Dicionário Bio-bliográfico Sergipano, de Armindo Guaraná, que tinha apenas em cópia, me foi oferecido. Presente de um amigo, lá de Itabaiana, que não o via, e assim continua, há muito tempo. O livro, apesar das páginas amarelecidas, se encontrava em ótimo estado, sinal até de que foi pouco lido. Ou talvez, nunca lido. Exultei.
          Mas, da alegria, ingressei no campo da tristeza. E esclareço, pelo destino que as bibliotecas particulares assumem quando seu proprietário morre. A minha, por exemplo, e tantas outras, amealhadas durante o decorrer da vida, quando, sepultado o proprietário, se torna um trambolho para a família. O Dicionário enviado pertencera a um determinado poeta, integrante da Academia Sergipana de Letras. Estava lá, como está, ainda, o registro simplório, em letras bem graúdas: É de fulano de tal. Eu, pessoalmente, o conheci, sempre de terno, a piteira na mão a segurar o cigarro tragado, o papo alegre com outro colega da Academia, ao passar por sua porta. Era muito menino para cumprimentar os dois, mantendo minha insignificância a distância.
          Alegria e tristeza, mais tristeza que alegria, pela tenebroso destino que se dá as bibliotecas … de quem morre. Um exemplo estava ali. O Dicionário parou em Itabaiana, – o poeta proprietário morreu há quase trinta anos – e o conterrâneo, parente não tão distante, numa homenagem que me emocionou, decidiu que em minhas mãos o livro receberia melhor cuidado e seria mais útil, e me fez uma gentileza que me surpreendeu, sobretudo quando há quase quarenta anos que o destino não nos coloca frente a frente.
          A realidade da biblioteca dos que morrem é preocupação para os que estão vivos, na fixação do destino a ser dado quando o chamado do além chegar. Os livros adquiridos no graduar dos anos, bem cuidados ou não – o meu compadre Carlos Rebelo Júnior, por exemplo, costuma forrá-los de plástico, os deles e os que, emprestados, chegam às suas mãos -, fuga de muitos nos horários de folga, companhia da solidão das noites e das madrugadas, presença na bagagem de viagem – eu, caixeiro viajante depois de velho, sempre carregando um para matar a solidão do avião e do hotel -, a proporcionar conhecimentos nas suas linhas e nos seus textos, guardados por matéria, ganham a condição de órfãos depois que o proprietário morre, coitadinho dele, sem poder levá-los para a viagem eterna – caixão não tem estante nem é biblioteca -, e, nessa situação, se colocam à mercê do destino que os herdeiros hão de anunciar.
          Pobres livros, muitos dos quais, provavelmente, nunca lidos, porque o livro pacientemente, aguarda anos e décadas para ser possuído, de repente, no desabrigo de seu antigo espaço, a esperar a voz de despejo que a qualquer momento a viúva e/ou os filhos do defunto-proprietário hão de conferir, agora que o finado se foi e os livros, adquiridos ao longo de tantos anos, em um ato só, poderão ser removidos para um destino incerto, separados e doados, a quem os sucessores acharem que do livro vão fazer bom proveito, com grande possibilidade de caírem nas estantes de um sebo.
          Bom. Destino de biblioteca de quem morre é assunto que os meus, particular e estrategicamente, não querem que eu inclua na ordem do dia.
Publicado no Correio de Sergipe

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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