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A primeira delas pousou em seu berço logo de manhãzinha. Era da cor da noite misteriosa: azul-escuro, grande, poderosamente bela. Chegou com os primeiros raios de luz e nem dá pra precisar se era mesmo uma borboleta ou talvez pudesse ser uma daquelas mariposas da noite, que as crianças chamam de bruxa.

Veio voando vagarosa, pousou nas dobras do cortinado e logo se infiltrou, habilidosa, com um fechar breve das asas, quase um passo de dança. Então, reabriu-as em par, majestosa e se manteve, ali, qual beija-flor, bem em frente ao rosto do bebê adormecido.

No mesmo instante, o menino abriu os olhos e, fascinado, esticou as mãozinhas em direção àquele movimento leve e colorido, que o hipnotizou imediatamente. Do rádio da cozinha chegava o som de uma música ritmada, que guiou os dedinhos da criança, fazendo-os mexer, como se houvesse, em suas pontas, fios invisíveis ligando-as ao abrir e fechar daquelas duas pétalas opacas e aveludadas, que sustentavam, no ar, a borboleta. Tudo tão em sintonia, tão harmonioso e extasiante, que se registrou nele, inexplicavelmente, como uma fragrância muito antiga, exótica, penetrante e inesquecível.

Durante muitos dias outras tantas mariposas, perfeitamente iguais à primeira, visitaram aquele quarto e ali se duplicavam, refletidas no espelho em frente à cama do menino. Foi de tanto admirá-las e brincar com elas, que seus olhos foram se acendendo, ele começou a rir e aprendeu, um dia, a gargalhar.

Cresceu nosso principezinho e os jardins por onde andou lhe ofereceram muitas outras descobertas. Entre folhas e pedras, poças d’água e pererecas, ia vendo formigas e passarinhos. Mas de tudo a sua volta ressaltavam-lhe as flores e as borboletas, que julgava seres de uma mesma espécie, ora quase imóveis, ora valsantes, como dançarinas exímias, presas ao solo ou soltas no ar.

Um dia, na Escola, lhe ensinaram sobre as lagartas. Os colegas estranharam o processo da metamorfose, mas não ele, que já nascera entendendo de casulos e solidões.

Assim, iniciou sua primeira coleção: uma caixa de sapatos, folhas selecionadas da amoreira afrodisíaca e a espera… O que ele nunca soube dizer ao certo é se a sensação de liberdade se iniciava quando ele encontrava a lagarta rastejante e a protegia, estimulando a que se tornasse depressa em borboleta, ou se era quando abria a tampa da caixa e, erguendo aquele útero de papelão no ar, dava à luz o ser alado.

Foi com os suspiros de alívio e prazer que se desprendiam de seu peito, ao absorver tão expansiva experimentação do espaço, que ele aprendeu a cantar. Assim, naturalmente, sua voz passou a embalar os primeiros e ainda cambaleantes ensaios do voar de cada borboleta nova. Era como se fosse através de sua voz que elas iam cada vez mais longe, realizando sua verdadeira vocação de anjos. Por um frágil momento o sopro do cantor e o vôo ficavam ligados por uma conexão etérea, que reavivava sua percepção da antiga fragrância, enebriando-o.

De vôo em vôo, o menino se descobriu um homem. Elevado pela voz e pelo ritmo de seu corpo, preso, por filamentos rigorosamente tênues, à perplexidade frente ao encanto: um artista.


Então, já não lhe bastava a contemplação. Desejou recriar aquela identidade una de que já participava, compondo diversas e infindáveis formas com diferentes borboletas. Mas de tão dolorosa que lhe foi essa passagem e do custo de tamanha necessidade de observação e astúcia, ele ao mesmo tempo foi se tornando, na vida, um curador. Compensava, cuidando dos outros, a sua própria dor e a via transfigurar-se em satisfação e contentamento. Ao mesmo tempo, cantando os vôos, mantinha intangíveis o puro prazer e a fantasia.

Algumas vezes quase se apegou a algumas borboletas, às suas asas multidinâmicas, aos seus tantos desdobramentos, como o das fadas! Desejou reter-lhes para além da cor, o tênue do encanto, o efêmero do prazer, o não capturável da possibilidade…

Daí inventou de criar mandalas. Foram mandalas sem fim, caleidoscopiadas, formadas de minúsculas partículas da película de milhares de asas recolhidas, agora, de borboletas sem vida. Já não lhe bastavam os vôos. Mas no deslumbrante tecido que ia crescendo, entre as invisíveis linhas divisórias de cada pedacinho, começava a se desenhar a insatisfação.

Dia a dia em nova procura, a cada momento num novo encontro, foi conhecendo o inalcançável da perfeição e, com ele, o desencanto. Buscando desesperadamente na memória, o sonho perdido, ela lhe devolve aquele primeiro momento mágico: – a luz filtrada pelo véu, o movimento de algo que lhe captura os sentidos, a vertigem, a perda da sensação de estar ali, tudo se confundindo, agora, com a impossibilidade do prazer completo, que se pode chamar de gozo ou de ilusão.

Entre sonhos, delírios e pesadelos, um dia, ao acordar, ele se descobre cego e não se espanta, nem se desespera. Porque, agora sente que está ali, bem próximo, a seu alcance, o vôo perdido.

Tateando, chega até a janela e a escancara. Recebe a primeira brisa da manhã acariciando-lhe os cabelos e pensa, com saudades, nos carinhos que não conheceu.

Voltando à mesa onde estivera trabalhando durante tanto tempo, acaricia delicadamente o enorme vitral composto com as asas recolhidas. Lembra-se, sem esforço, de cada cor, cada tonalidade, cada recorte, mas não mais consegue encontrar o inebriante no contato.

Vai esticando cautelosamente até a janela, a tessitura, como se fora uma rara e preciosa partitura e, ao se aproximar do parapeito, começa a sentir os primeiros raios do sol brincando em suas mãos, já não tão jovens. Suspira profundamente, como que enamorado.

Vai soltando pouco a pouco sua mandala e percebe que ela não cai… Ao mesmo tempo, pontos de luz começam a abrir canais diante de seus olhos e, de repente, lhe são devolvidas, envoltas num enorme flash, todas as cores possíveis e cambiáveis. Então ele vê: são de novo os vôos, que recomeçam… Centenas de borboletas multicores, frágeis e vigorosas, graciosas bailarinas, desprendem-se umas das outras, desfazendo a trama, desamarrotando as asas e partem, lentamente espaço afora, confundindo-se com o todo e sendo, já, elas próprias, a paisagem distante.

Por último surge, à sua frente, a grande borboleta azul, mariposa ou bruxa; rodopia uma dança de despedida e se afasta, fechando, com a dignidade de uma deusa, o magnífico cortejo.

Durante todo aquele dia, o homem mantém a janela aberta. E chora, silenciosa e confortavelmente, muitas vezes.

Depois, vai dormir um sono de menino, sabendo que acordará menos só.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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