Estou em Sousa, começo da noite, solitariamente sentado na varanda do primeiro andar do hotel, na entrada da cidade, tentando matar o tempo para a manhã chegar mais depressa. Sinto o vento balançar preguiçosamente alguns galhos de árvores no pátio do hotel. De longe, algumas luzes, amareladas e enfileiradas, se resumem a um pisca-pisca miúdo. De quando em quando, um veículo passa, de um lado e de outro, alternando com seu barulho o silêncio imperante. O mais se limita a presença de arbustos do outro lado, na frente do hotel, mergulhados todos na escuridão que a noite provoca.
         De minha parte, me integro à solidão da paisagem, os olhos voltados para as luzes de veículos que passam, quebrando a monotonia do ambiente, no qual reino sozinho, e, nesse sentido, me sinto imperador de um mundo solitário, onde meus pensamentos são mais livres que o corpo, ali preso, enfiado numa cadeira, a apreciar o nada, como se fosse um vigilante da paisagem que a noite constrói, testemunha muda de carros que violam o silêncio e expectador de luzes que só sabem piscar.
          De repente, não mais que de repente, o inesperado: um vôo a minha frente, nas árvores próximas, como se surgisse do nada, um pássaro se torna presença, ganha formas na brancura de suas penas. Meus olhos curiosos o fixam em pleno vôo, na busca de sua identidade. Penso ser um pombo. Mas, à noite, naquela escuridão, fica fora de qualquer cogitação. A ave me encara de longe, é a impressão que causa, como se fosse eu um intruso do seu mundo, e, mudando de rota, pára alguns instantes no ar e, mergulha, com as cautelas devidas, no escondido dos galhos, de onde, a partir daí começa a surgir um fri-fri-fri, que me faz cogitar de um ninho instalado no apertado dos galhos.
          A ave, esclareço, enfim, uma coruja, no rápido vôo, que empolga a minha curiosidade e meu senso de anotador de fatos, a registrar, de imediato, o seu caráter histórico por ter sido a primeira vez em que via uma coruja, livre das jaulas de um zoológico, se exibir a minha frente, a cogitar de ter sido proposital a sua atitude, para que enchesse minha solidão com o seu inusitado surgimento, a fim de me proporcionar alguns segundos de beleza, talvez como forma de compensação pelo pássaro que, na minha ida a Sousa, ao atravessar a estrada, foi tragado pelo vácuo que um caminhão provocou e, tragicamente, veio se bater no vidro do meu veículo, onde já deve ter caído no chão sem vida. O certo é que o vôo foi o colorido da solidão de minha noite, a ponto de merecer agora o registro para se tornar eterno nestas mal traçadas linhas, a lamentar apenas a ausência de uma máquina fotográfica que, naquele instante, pudesse captar a coruja em pleno ar, sedimentando, assim, a elegância sisuda do seu aparecer.
Publicado no Diario de Pernambuco
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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