Esta foto já se nos tornou familiar. Um crucificado solitário em meio às ruínas da Igreja do Sagrado Coração. Momentos antes da tragédia, a doutora Zilda Arns se dirigia aos haitianos expondo-lhes as linhas principais de sua cruzada a favor das crianças mais pobres. Mais uma etapa de sua peregrinação contínua em prol da vida dos mais carentes. Uma luta começada anos atrás em nosso país e já com uma longa história de dedicação generosa, de renúncias repetidas, de muita fé comprovada pelas dificuldades enfrentadas, de oração constante, de despojamento pessoal, de gratuidade discreta, de coragem cristã frente aos desafios dos ambientes de pobreza, insalubridade e penúria que encontrava.
Naturalmente a Igreja será reconstruída. Certamente outros assumirão a causa da Pastoral da Criança, embora sem o carisma singular de sua fundadora. Mas e a pessoa da cristã Zilda Arns? Foi apenas mais um personagem que superou a mediocridade de tantos humanos, na seqüela de outros também insignes que a precederam e que o tempo pode reduzir a uma tênue lembrança? Ou será que foi alguém cuja vida repercutirá sempre não só para seus contemporâneos, mas também para os vindouros? A resposta afirmativa a esta questão pede uma reflexão e orienta as próximas linhas.
Para tal teremos que relacionar o crucificado, as ruínas da Igreja e a médica Zilda. Vejamos primeiramente como se relacionam a Igreja Católica e a mulher Zilda. Todos nós sabemos como dependemos da família, quando se trata de herdarmos valores e traços de caráter. Como sabemos também como a fé religiosa plasma a educação que recebemos, as características culturais que priorizamos, as orientações para as opções decisivas de nossas vidas. E a jovem Zilda foi educada numa família profundamente católica, pais praticantes, irmãos e irmãs religiosos e sacerdotes. Mas esta família catarinense pertencia a uma família maior, da qual muito recebeu para ser o que foi. Esta família maior é a própria Igreja, através da qual conheceram a mensagem evangélica e a pessoa de Jesus Cristo, experimentaram a força do Espírito Santo e a misericórdia do Pai, tiveram sua fé confirmada pela vida de outros membros da comunidade eclesial e pela recepção assídua dos sacramentos.
Portanto, não podemos explicar a vida de Zilda Arns sem incluir a função materna e educadora da Igreja em sua pessoa. Mas aqui não termina esta relação. Pois Zilda, como qualquer católico, é não só membro desta Igreja, mas constitui sem mais a própria Igreja. Mesmo que sua pastoral da criança ultrapasse, como se deu, os muros da Igreja, mesmo que receba ajuda oficial do governo, como aconteceu, mesmo que esteja voltada para todos os necessitados de qualquer credo religioso, como sucedeu de fato, ela significa uma presença e um testemunho vivo da Igreja. Este fato repercute fora da Igreja, na própria sociedade como podemos comprovar pelo reconhecimento geral atestado pela mídia. Numa sociedade marcada pelo individualismo e pela busca do bem-estar pessoal, a figura desta médica cristã se destaca por seu compromisso desinteressado e gratuito pelas crianças carentes.
Mas também repercute para o interior da Igreja. Pois, como cristãos, não somos apenas defensores de doutrinas ou de padrões morais. Nossa fé depende também do testemunho de outros irmãos e de outras irmãs nossos, que demonstram com suas vidas ser verdadeiramente uma realidade o que cremos, através da atuação salvífica de Deus acontecendo no hoje da história e movendo homens e mulheres a lutar por uma humanidade mais fraterna e uma sociedade mais justa. Todos nós necessitamos dos exemplos de cristãos autênticos que injetam entusiasmo e motivação em toda a Igreja. E será esta fé da Igreja de católicos e de católicas, fortalecida pela figura de Zilda, que irá reconstruir a Igreja de pedras e tijolos para a oração e a celebração das gerações vindouras.
E como se relaciona o Cristo crucificado com a Igreja destruída e com a doutora falecida? Poderíamos responder com outra pergunta: haveria o templo material e a cristã Zilda sem Jesus Cristo? Pois foi Ele que iniciou tudo, demonstrando com sua vida e suas palavras que uma sociedade alternativa a esta é possível e é querida por Deus. Foi Ele que arrastou alguns contemporâneos seus para continuar sua obra. Foi Ele que deu lugar a uma comunidade de seguidores que mantém viva na história sua pessoa e sua mensagem. Foi Ele que ocasionou a construção de templos materiais para as celebrações desta comunidade. Foi Ele o ideal de vida da jovem médica Zilda, o segredo de sua coragem e tenacidade, a força interior de suas lutas. Não é Ele que explica sua persistência nas contrariedades e sua alegria ao fazer o bem aos outros? Mas tenhamos bem presente: também Ele morreu e, ressuscitado, continua agindo na humanidade. Como nossa médica continuará, agora vivendo em Deus, e de um modo que nos escapa, a animar a Pastoral da Criança e as colaboradoras que formou. Quanta coisa pode nos ensinar uma simples fotografia!
Obs: * Foto da AFP
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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