professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *

       O paraense Raimundo Cícero e sua esposa Vanessa são jovens, com menos de 30 anos. Não são ricos e lutam para viver. Apesar disso, esperavam com cuidado e alegria os gêmeos que habitavam o ventre de Vanessa havia sete meses. Ela fazia o pré-natal no hospital da Santa Casa de Belém, acompanhando passo a passo o delicado processo de uma gravidez gemelar.

       Por isso, quando começou a sentir contrações, foi com o marido à mesma Santa Casa, às 4h30 da madrugada. Os bebês pareciam querer nascer antes da hora. Foram informados de que não seria possível internar Vanessa, porque não havia leitos disponíveis. O casal procurou, então, o Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, mas também aí não encontrou lugar.

       Desesperado, Cícero pediu apoio ao Corpo de Bombeiros e retornou à Santa Casa de ambulância. Vanessa deu à luz o primeiro bebê, que nasceu morto. Mais tarde, Vanessa foi finalmente atendida no hospital e teve a amarga notícias de que seu segundo filho também nascera morto.

       Um soldado do Corpo de Bombeiros deu voz de prisão à médica plantonista, alegando omissão. Os corpos dos bebês foram enviados à perícia para apurar a “causa mortis”. A plantonista afirma que a morte ocorreria de qualquer forma. Por sua vez, a administradora do hospital descreve com riqueza de detalhes a infernal situação em que se encontra o hospital, com as unidades cheias, falta absoluta de leitos disponíveis e fila de pessoas implorando uma vaga.

       O secretário de Saúde do Pará declara que mesmo com a superlotação a paciente deveria ter sido encaminhada para um leito até que fosse transferida para outro hospital. Os médicos da Santa Casa alegam que Vanessa estava na 30ª semana de uma gravidez de alto risco.

       O que mais assusta é o caso dos gêmeos de Belém não ser um fato isolado nem esporádico. Em Barreiros, há poucos dias, a fotógrafa Marcela Maria da Silva, 21 anos, esperou 18 horas por atendimento obstétrico, porque não havia especialista no plantão. Mãe e filho morreram.

       Em Maceió, também há poucos dias, o Serviço Móvel de Atendimento de Urgência (SAMU) não dispunha de motorista para buscar Jardilane Maria do Carmo, de 19 anos, quando ela pediu ser transportada até a maternidade. Orientaram-na que pegasse um táxi. Desesperada, a jovem viu seu bebê de 32 semanas morrer a caminho do hospital.

       No Recife, Clara e Josenilton esperavam o segundo filho. Já em trabalho de parto, ele a levou em seu carro do bairro da Várzea, onde moram, ao Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária. O carro chegou rápido, mas o hospital não dispunha de uma maca para transportar Clara até o setor de obstetrícia, que se situa no 4º andar. O menino de 3,7 quilos nasceu dentro do carro após 50 minutos de espera, enquanto o pai corria desesperado pelo hospital para conseguir uma maca. Quando chegou, não havia mais nada a fazer. O bebê estava morto. Não havia leito, não havia especialista, não havia ambulância, não havia maca.

       E com essa não existência das mínimas condições para o funcionamento de um hospital o resultado é que não havia vida depois de um tempo curto, mas longo demais para os pais que esperavam uma criança que ia alegrar-lhes a casa e dar sentido às suas vidas.

       Todos esses casos aconteceram no Norte e no Nordeste do país, regiões sempre mais penalizadas pelas deficiências no equipamento e atendimento quando se trata da saúde pública. Porém, as grandes capitais não estão tão longe deste estado de coisas. Não são poucos os casos similares de que se tem notícia nas grandes cidades do país.

       Diante desta triste situação, o mais cômodo e mais fácil é declarar o feto natimorto, com óbito acontecido ainda no ventre. No entanto, não deveria ser outro o veredicto? Não será a saúde que, com tal estado dos hospitais públicos, encontra-se natimorta? Não será a instância que deveria garantir a vida que se encontra tomada pela contramão da morte, que faz com que a vida se esvaia e flua pelas brechas abertas da carência, do descaso e muitas vezes do descuidado e da incompetência?

       De nada adianta ser o país do futuro, a superpotência do momento se a vida não pode ser vivida. Mais: se a vida não tem lugar para acontecer. Não é a gravidez dessas jovens mulheres que é de alto risco. É toda a vida dos brasileiros que se encontra em situação de risco se providências drásticas não forem tomadas a respeito das condições de atendimento de nossos hospitais.

Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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