Sabemos que a tarefa da Igreja é a de ser instrumento do Reinado de Deus. Ora, segundo as Escrituras, Deus tem o propósito de revelar e estender Sua soberania sobre toda a criação (cf. Gn 1). Quando, então, falamos do Reino de Deus, referimo-nos ao mundo, à sociedade, ao dia-a-dia das pessoas, aí é que se deve realizar e manifestar o que Deus pretende para Sua obra, como o anuncia tão belamente o Apóstolo na Epístola aos Romanos, capítulo 8.
O aspecto religioso da vida, mesmo sendo o mais profundo, não é toda a vida. Tudo tem a ver com o religioso, e sobretudo com a fé, mas o religioso não é tudo. A vida tem muitos outros aspectos. O campo do religioso é onde se explicitam as perguntas e a busca pelo sentido da vida, e se experimenta a relação com o Absoluto. Mas a vida é bem mais que religião. Particularmente bem mais que as formas concretas que vão tomando nossas buscas religiosas. A vida é também economia, são relações sociais, é poder político, é produção cultural. Tudo isso, e não só a religião, tem de estar sob a soberania, o propósito de Deus e o Seu julgamento. E a Igreja de Cristo, entre muitos outros, é instrumento privilegiado para que isso aconteça de fato (cf. Ef 1).
A variedade de ministérios na Igreja deve promover o exercício desta tarefa: ajudar a criação a tornar-se cada vez mais Corpo universal de Cristo, “nova criatura”, conforme a perspectiva que se expressa claramente em Romanos 8, Efésios 1 e 2 e Colossenses 1, 15-20.
Nas “05 Marcas da Missão”, segundo a Comunhão Anglicana, nossa tarefa de evangelizar é anunciar a Boa-Nova de Cristo, chamar à conversão, batizar as pessoas e iniciá-las à vida comunitária. Mas diz-se claramente que o objetivo de tudo isso é nos prepararmos sempre mais a assumir serviços de amor em solidariedade com as pessoas necessitadas; a lutar corajosamente em vista de colaborar na transformação das estruturas injustas da sociedade; a zelar cuidadosamente pela vida na terra, conservar e renovar os recursos da criação. Como vemos na Bíblia, o grande objetivo da Igreja é que se revele finalmente a face cósmica de Cristo, a nova figura da criação (cf. Rm 8 e Ap 21).
Lamentavelmente, freqüentes vezes, a Igreja se retrai e quase se reduz aos aspectos religiosos de seu ministério. Ora, na verdade, a religião na Igreja se destina a ser só instrumento da Palavra e da obra de Deus. Não tem sentido por si mesma, é só meio a serviço da Revelação e da plena Libertação. Esquecemo-nos facilmente de que a oração, a meditação, o culto são exercícios necessários, sim, mas para nos prepararmos aos combates de Deus, que se dão, não prioritariamente no recinto dos templos, mas na arena do mundo. É essa a grande lição de toda a Bíblia. Nossa oração tem de ser como a de Jesus, “oração da vigília” que nos prepare para assumir corajosamente a tarefa profética de restaurar em nossas vidas e na sociedade a Justiça de Deus. (cf. Is 42; Lc 4, 16-21).
Entre os diversos ministérios (cf. Ef 4, 1-16), o Diaconato é particularmente uma vocação que se “ordena” a exercer um ministério “mundano”, “secular”. É o que se poderia chamar de ministério “sacramental” nas formas do dia-a-dia do mundo. Sua tarefa precípua é levar a comunidade da Igreja a inserir-se na vida do mundo, participar de seus sonhos, de suas aspirações e de suas lutas, e trazer o mundo para o interior da vida da Igreja, a qual deve estar a seu serviço. Não é nem exclusivamente, nem primariamente ministério cultual. Antes de tudo, é serviço à evangelização da sociedade, anúncio de que o mundo é de Deus e por isso para Ele deve voltar-se, converter-se. Por isso, para anunciar o Evangelho mediante gestos e palavras, assume particularmente a diaconia social e política para, desse modo, realizar os sinais do Reino de Deus, aqueles que Jesus mesmo indica no Evangelho: abrir olhos (cf. Jo 9), levantar da paralisia, incluir gente excluída, fazer ouvir novas propostas de vida, libertar das alienações, ajudar a renascer mediante vitórias sobre a morte, restaurar a dignidade dos pobres (cf. Lc 4, 16-21; 7, 18-28).
Não é por acaso que na Liturgia as funções típicas do Diaconato são aquelas que simbolizam seu ministério “secular”, de ser ponte entre a Igreja e a sociedade: liderar a assembléia litúrgica na intercessão, isto é, trazer para o coração da Igreja as necessidades e as dores do povo, sobretudo das pessoas mais necessitadas; proclamar o Evangelho para que percebamos com clareza as exigências da vontade de Deus e o testemunho de Jesus; recolher as ofertas materiais para manter a vida da comunidade e partilhar com quem é pobre e necessita; preparar a mesa do Senhor, que é sempre a mesa profética que anuncia a partilha do pão para a vida do povo, como centro de nosso compromisso de fé (cf. Mc 6, 30-44); despedir a assembléia, enviar-nos ao mundo para aí exercer o serviço de Cristo, o Diácono por excelência (cf Fl 2, 5-11), como nos ensina Santo Inácio de Antioquia. Serviço de Cristo, que visa a redimir e transfigurar o universo, imprimir no corpo do mundo “as marcas de Jesus” (cf. Gl 6, 17).
Pessoas são ordenadas diáconos e diáconas para liderar o povo cristão em duas frentes que levem a Igreja mais além das fronteiras e que são intimamente conectadas entre si: a Evangelização e a Diaconia Social e Política. Esta, sempre como primeiro passo e dimensão permanente daquela. A palavra de anúncio da Boa-Nova tem de estar legitimada por gestos significativos que manifestem o carinho de Deus na vida das pessoas, gestos que as levem a perguntar: “Em Nome de quem nos fazeis estas coisas?” (cf. At 3, 1-10). Só fomos enviados e enviadas a evangelizar. Qualquer trabalho de ação social na Igreja tem sentido na medida em que revele a presença amorosa de Deus, como de Pai ou Mãe. Na medida em que faça as pessoas experimentarem concretamente sua dignidade de filhos e filhas de Deus. Finalmente, é mediante o aproximar-se daquelas pessoas e grupos, que o mundo despreza e exclui, que a Igreja, ela mesma, se deixa evangelizar. Estar junto das pessoas crucificadas é que nos revela a Cruz de Jesus em toda a sua força e atualidade, conforme nos ensina o Apóstolo São Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulos 1 a 4.
Acompanhei com interesse o trabalho do Reverendo Sílvio no projeto social no município de Araçoiaba, na zona da mata de Pernambuco, área intermediária entre o Recife e João Pessoa. Município de gente muito pobre e abandonada em meio ao “inferno verde” da cana de açúcar. Logo percebi aí uma particular realização do ministério diaconal. Não era em torno do tempo que se congregava o povo, mas em redor da urgente tarefa de resgatar a vida de pobres, que são o sagrado ícone de Cristo (cf. Mt 25, 31-46). Aparentemente não se tratava de trabalho religioso, mas era presença qualificada da Igreja como fermento na massa de uma sociedade de opressão e exclusão, como luz em ambiente de densas trevas (cf. Mt 5, 13-16). O Reverendo Sílvio não celebrou nem um culto anglicano em Araçoiaba, mas exerceu plenamente sua ordenação de diácono anglicano, pois aí estava como “ordenado”, destinado a proclamar, por gestos e palavras, a Boa-Nova de que filhos e filhas de Deus podem ser mais felizes, podem tomar posse do mundo, como co-herdeiros com Cristo da obra da criação (cf. Gl 3, 23–4,7); pode haver “vida em abundância” para todo o povo, pois essa é a vontade de Deus (cf. Jo 10, 10). Foi justamente por isso, “porque amou tanto o mundo que Deus entregou o Seu próprio Filho unigênito” (Jo 3, 16).
Quando aceitou o convite para servir na Diocese Sul-Ocidental, no Rio Grande do Sul, e se despediu de nós no início do ano de 2008, pedi-lhe que nos deixasse seu testemunho. Uma maneira de nos dizer “até logo” e nos interpelar e nos recordar da tarefa essencial que temos recebido como Igreja de Jesus. Desejo a todos e todas nós, e de maneira especial a nossos diáconos e diáconas, que nos sintamos estimulados a redescobrir o lugar e a tarefa de nosso ministério, de serviço em nome de Cristo no coração do mundo. Que ainda ressoem com força mobilizadora em nossos ouvidos e corações as famosas palavras de João Wesley, o anglicano que deu origem ao movimento metodista: “O mundo inteiro é minha paróquia”!
* Bispo da Diocese Anglicana do Recife – DAR
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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