Dade Amorim - In Memorian 15 de agosto de 2011

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Entre as substâncias capazes de lhe provocar viagens inesquecíveis e nunca – mas nunca mesmo – uma bad trip, chamo a atenção para algumas ao alcance de todos e que não trarão nenhum prejuízo financeiro, moral ou neurológico. Olha só: se você estiver no Rio, vá até o Arpoador ver o pôr-do-sol. Junte-se aos viciados que quase todo dia se encontram lá para provar os efeitos do visual. A única despesa pode ser talvez a passagem ou o combustível, mas até o estacionamento é grátis e não há consumação ou couvert artístico. (E não venha me dizer que nada disso envolve “substâncias”. Nem preciso dizer que o meio ambiente está carregado delas, e que as sensações que provocam mexem com suas sinapses sem destruí-las ou lesar suas funções, viu?)

Encher a vida com pequenas alegrias pode funcionar muito bem: um hobby, uma coleção, um canto da casa para curtir o que você mais gosta.

Você pode por exemplo andar pela floresta e, no meio daquele silêncio absoluto (não é o absoluto o que se busca nas drogas?), ouvir algumas vozes que com freqüência parecem cintilar ou entoar alguma música, em geral deliciosa para os ouvidos e muitas vezes intrigantes, verdadeiros desafios de som. Acresça-se a leve brisa e o visual do lugar, e as sensações mais gostosas tomam conta de você.

Quer ver outra droga de efeito? Olhe para o céu com vagar e toda sua atenção. A qualquer hora ou lugar de onde possa. Lembre a criança que ainda existe em você e analise as formas das nuvens mutantes. As crianças têm uma fórmula toda própria de curtir as coisas, o mundo a sua volta. Pena que nem todas possam se entregar a esses momentos de leveza e puro prazer. Um adulto pode evocar esse estado de bem-aventurança para ver o mundo com olhos infantis, não pode? Procurar distinguir as tonalidades que o céu apresenta, em especial de madrugada e à tardinha, e se for possível fotografar o que vê.

Sempre que puder, olhe também para o mar, de qualquer ângulo e a qualquer momento. Ele garante um tempo de paz ou arrebatamento em que você pode mergulhar sem medo e esquecer seus problemas, angústias, medos e contas vencidas.

Se ainda estiver acordado, for plantonista ou sofrer de insônia, ou ainda se gostar de pular cedinho da cama, viva a madrugada. Mergulhe nela inteiro, sinta seus cheiros, ouça os sons de seu silêncio; observe a luz, o céu, as árvores; escute e veja os pássaros.

Há ainda outras opções, como exposições ou a arquitetura de sua cidade, antiga, neoclássica ou contemporânea. A diversidade dos bairros, a beleza e o aconchego de certas ruas e ambientes. O desenho das montanhas. O sorvete da Shaika, lugares gostosos de ficar e onde se podem reviver os sabores que nos deram tanta felicidade.

Outras opções podem lhe ocorrer, é só querer usar a imaginação. Assistir a bons filmes, escolher uma peça de teatro, ir a um show, dançar. Ler o que lhe dá mais prazer. Livros não faltam, nem bons autores. Livrarias ótimas, sebos perfeitos onde você se sente tão à vontade que pode até tirar os sapatos ou levar uma cadeira de praia para escolher com mais conforto sem gastar mais que o possível ou até menos. Sem falar das atividades que o envolva inteiro e que, mesmo não lucrativa, lhe dê um enorme prazer e o faça sentir-se realizado – pesquisas, artes plásticas, música, escrita, moda, teatro… ou economia, quem sabe?

Existem atividades capazes de amenizar o sofrimento de pessoas menos afortunadas, e com certeza tais atividades irão tomar muito do tempo de quem se envolva com elas, porque os que precisam de atenção, carinho e socorro existencial são muito mais numerosos do que se imagina. Se alguma dessas funções lhe parece motivadora, não deixe que se perca esse potencial. Entrar em contato com crianças, velhos, doentes, internados sem esperança de cura e todo tipo de gente desvalida talvez lhe dê um tipo de alegria muito especial. É preciso uma vocação, mas talvez você nunca a descubra se fugir desses contatos e perca a chance de espalhar um pouco de alento para quem precisa – e como se precisa!

E os papos com aqueles amigos do peito que curtem os mesmos assuntos? E os planos de reforma do apartamento, a vontade de fazer alguém muito feliz, a expectativa de um encontro que promete bons momentos?

A lista pode não acabar nunca, porque o melhor guia para conseguir acesso a um barato incomparável é sua própria imaginação. Sendo assim, vamos combinar que é uma burrice enfrentar as caras feias e os fuzis dos hômi. E se o que você mais deseja é o desafio do perigo, pratique um esporte radical ou entre para a polícia. Ou para a política. Ou então se envolva na investigação do caso Celso Daniel.

Emoções e sensações prazerosas são um pressuposto da vida. Mas se a gente só as consegue à custa de uma substância estranha ao próprio organismo, alguma coisa não está funcionando como devia. A vida não é simples, a gente sabe, e existem coisas capazes de interferir em nossa capacidade de aproveitar tudo que ela nos oferece. Mas nesses casos, será que a droga pode resolver – ou será que vai complicar ainda mais as coisas?

Melhor dar um pulinho ao Arpoador.

Obs: Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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