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Em uma palestra proferida em 1987 para estudantes de cinema, Gilles Deleuze aponta nos personagens de Dostoiévski, filmados por Akiro Kurosawa, uma forma de agitação pela qual estão sempre vitimados pela urgência: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”, ou “É um incêndio, é preciso que eu vá” – mas qualquer incidente ou encontro casual com alguém os leva a esquecer a pressa e o chamado. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que são presas dessa urgência, os personagens do autor russo “sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual”. Essa noção de que há um problema mais profundo do que aquele da circunstância do momento paralisa os personagens e os desperta para alguma coisa que, embora não definida, é ainda mais urgente. O próprio Kurosawa tem em seus filmes essa marca dostoievskiana de criar personagens inquietos, que se metem em situações incríveis, mas nunca perdem o sentido dessa “coisa mais urgente” que está além de tudo e é a mais importante de todas.
Isso configura uma atitude basicamente filosófica diante da vida. Vamos dizer que os fatos do dia-a-dia são matéria de informação, e essa “coisa mais urgente” seja matéria de contra-informação efetiva, para usar as palavras de Deleuze, porque resiste aos fatos cotidianos e corriqueiros, vai mais além da opinião e da ação imediata.
A sociedade em seus mecanismos de controle não está além do cotidiano; muito ao contrário, dobra-se sobre o cotidiano para mantê-lo dentro de suas normas. O controle se exerce com objetivos pragmáticos, para conseguir resultados concretos. Por isso Deleuze define a arte como ato de resistência à sociedade de controle. Mas não é só isso. Ele se reporta a um conceito de André Malraux: a arte é a única coisa que resiste à morte. O exemplo que ele invoca é bem significativo: uma estatueta de 3 mil anos antes de Cristo ainda causa prazer por sua beleza, e no entanto passaram-se milênios de civilizações e culturas diferentes.
Considerando que a morte é um controle da vida, no sentido de uma limitação imposta, pode-se estender esse conceito até mesmo a gestos e símbolos de resistência que, se não são necessariamente obras ditas de arte, mantêm com elas uma afinidade de significação nos modos como se originam e como afetam a sensibilidade humana. Mas existe sempre, em toda obra de arte, um traço de resistência, de avanço em relação a sua época e de perenidade, no sentido em que ela vale para outro tempo muito além, talvez para sempre, o que é muito para se dizer. Por isso Paul Klee, o pintor, dizia que toda obra de arte faz apelo a um povo que ainda não existe.
Obs: Imagem enviada pela autora.