7 de agosto de 2011
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *
Dia dos Pais quase nunca foi dos mais alegres em minha infância. Perdi meu pai aos nove anos de idade e a partir daí essa data era um tanto tabu, onde todos procuravam fazer-me esquecer a única dor que já experimentara em uma vida coberta de carinho: eu não tinha pai. Era órfã. Palavra que soava como um soco no estômago ou um dardo no coração: órfã, órfã, órfã.
O câncer levara meu pai, homem bonito, alto, risonho e carinhoso, aos 46 anos de idade. Deixou um rastro de luto e lágrimas a marcar para sempre rosto e olhar de minha mãe, que largou um pedaço de si própria no enterro do esposo profundamente amado. Diziam-me as coisas mais desajeitadas e odiosas sobre o tema: que eu devia aceitar a vontade de Deus, que havia sido melhor para ele, que agora eu tinha que ser muito boazinha para mamãe etc.
Nunca fui de entregar-me facilmente e baixar a guarda. E com esse importante episódio de minha vida não foi diferente. Resolvi que se eu não tinha pai, podia viver sem ele. E que não ia dar a ninguém o gosto de me ver triste e chorando. Trinquei meus pequenos dentes com raiva, apertei os punhos e parti para a luta pela alegria que parecia me haver sido roubada para sempre com o desaparecimento do princípio da realidade do meu horizonte.
Não foi fácil. O coração apertava quando via as amigas e colegas com seus pais, celebrando o Dia dos Pais e aniversários e Natais, povoados da força e do carinho que não eram presentes em minha casa e em minha vida. Embora minha mãe tentasse ser ao mesmo tempo pai e mãe, não conseguia. E a falta da presença paterna era duramente sentida como uma amputação irreparável.
Mas a orfandade ensinou também algumas lições que tentei aprender o melhor que pude. Com ela aprendi que nada na vida pode-se considerar como já conquistado. Por tudo há que lutar com bravura e valentia, persistência e teimosia. A vida não se rende em preguiçoso “a priori”. Tem que ser buscada com unhas e dentes e toda luta é pequena para conservá-la e readquiri-la a cada suspiro e a cada instante. Assim cresci, assim me formei, assim conheci o homem que hoje é pai de meus filhos e decidi que uma vez que a paternidade povoou novamente minha casa e minha vida, não iria deixá-la ir embora tão facilmente.
Assim vi meus filhos crescerem, perdi noites de sono por causa deles, sofri com suas hesitações escolares e vitais, alegrei-me com seus sucessos, orgulhei-me, envergonhei-me, engoli sapos e aceitei críticas. A orfandade fizera de mim uma lutadora quase beligerante, perfil que a família que formei suavizou, mas não chegou a eliminar.
Porém, a experiência definitivamente sanadora que colocou como um selo em meu aprendizado de órfã foi o aprendizado da oração. Em um retiro que fiz, já adulta, experimentei finalmente a presença de Deus Pai, fonte de onde jorra toda paternidade. Acolhi em lágrimas o dom de poder pronunciar “Abba Pai” e sentir que me dirigia a uma pessoa que me envolvia com seu amor. E enquanto isso acontecia, era como se todo o sentimento guardado e reprimido houvesse formado um tumor túrgido e doloroso que agora drenava um líquido viscoso e liberava a carne para, viva, novamente pulsar e palpitar.
Foi uma lição quase definitiva, essa. Porque sinto que ela só se faz completa hoje, quando contemplo, deslumbrada e agradecida, a paternidade de meu filho que carrega em seus braços, sorridente, a pequena Maria Antonia. Nesta paternidade vejo a paternidade interrompida em minha vida re-fazendo seu ciclo e recomeçando a girar em novo ciclo feito de amor e fecundidade.
Volto a celebrar de todo coração o Dia dos Pais. Posso celebrá-lo com redobrada alegria. E as lições que aprendi, tento humildemente comunicá-las aos outros. Por isso lhes digo: aproveitem seus pais. Dêem-lhes muitos, infinitos abraços e beijos. Digam até cansar que os amam. Cuidem deles para que fiquem mais tempo, o maior tempo possível, junto de vocês.
Mas sobretudo, não percam a ligação e a sintonia com a paternidade divina. Dali jorra uma fonte pura que é graça e vida em abundância. Quem estiver ligado a esta fonte jamais se sentirá sozinho ou órfão. Não é à-toa que a oração que Jesus ensinou e deixou como legado começa com a palavra Pai. Quem entende o que esta oração significa, sabe que não é órfão e é infinitamente amado. Feliz Dia dos Pais para todos.
*Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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