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Acabo de chegar de Fortaleza. Viagem afetiva, cercada de carinho e alegria, minha volta deveria me fazer escrever uma crônica otimista. Quem me dera!

A Fortaleza de minha fantasia deveria ser uma cidade praiana que conservasse a doçura e a amorosidade do Nordeste, mesmo com o crescimento inevitável e o desenvolvimento desejável, que alcançam e projetam as nossas capitais. Mas o que encontrei foi um lugar onde espigões gigantescos são plantados às dezenas, alterando a paisagem natural, emparedando o vento, impedindo que nossa vista alcance livremente as velas do Mucuripe, onde o Edu Lobo nos receitou deixar as mágoas. As avenidas, entrincheirando as ruelas onde os mais pobres teimam em morar, fazem com que o conjunto de edifícios suntuosos e supostamente elegantes tenha cara de cenário, como se aqueles prédios de arquitetura totalmente estrangeira ao local, fossem resultado de uma composição virtual, num desenho-animado futurista.

Ah! O mundo das virtualidades em que nos vamos dissolvendo! O problema é que, nele, não se aprofundam as virtudes, fundamentais e fundadoras.

Em Fortaleza, o resultado disso é uma estranheza cultural que acaba por transformar os jovens locais das camadas mais pobres em ratazanas. Eles não parecem miseráveis, nem desprotegidos, mas em bandos ou aos pares, assaltam, sem pudor ou temor, à luz do dia, em ruas com moradias de muros altos com arames farpados, eletrificados ou vidros pontiagudos exibidos no topo, como defesa. Aliás, a forma com que a segurança dos prédios é feita, já denuncia a situação. Os porteiros não ficam na porta, como parece óbvio pensar que deveria ser. Estão em guaritas elevadas, como em postos de observação de defesa dos antigos fortes militares. Mas, àquilo que se passa na rua, limitam-se a assistir, passivamente. Passivamente também estão os poucos transeuntes que testemunham os ataques; e os motoristas dos táxis, que acolhem as vítimas amedrontadas, como novos passageiros apenas, sem nenhuma emoção ao ouvir o relato do roubo.

Os moradores da região não andam mais a pé. Poucos pedestres pontilham aqui e ali, em ruas largas, com exceção do calçadão da orla, de intensa movimentação de caminhantes, onde o policiamento ostensivo é feito por policiais elegantíssimos numa frota de carros classe AA, novos em folha, provavelmente para combinar com o glamour pretendido pela “modernização” da cidade. Mas o que está por trás de tudo isso, longe de ser fortaleza é enfraquecimento cultural, causado pela violência da invasão desenfreada de costumes estranhos às raízes locais.

Andei por lá, buscando entre os artesanatos maravilhosos (que ainda se encontram no Mercado, na feirinha da praia e na pequena loja do CeArt ), os artesãos ou o caminho deles, que sempre me encantam e enriquecem. Causei espanto por minha insistência em perguntar pela origem de cada peça que ia vendo. A todos parecia muito estranho que eu não me contentasse em comprar, mas quisesse compreender o processo do fazer de cada um. Então, por fim, encontrei a Neide. Ela borda com tanto amor que confessa ter dificuldade em se separar da peça que produz.

Bendita Neide! Entre seus dedos passa, pelo cordão da linha colorida, o fio da própria Vida, tão embaralhado a sua volta. E ela resiste a esse burburinho enlouquecedor, bordando… Mesmo por um preço simbólico… Mesmo sofrendo, como num pós-parto, ao entregar sua criação ao mundo. Sorrindo, ela me mostra o novo trabalho ainda inacabado, com o qual recomeça o ciclo…

Ao final de minha última tarde em Fortaleza, essa esperança que aquela mulher bordou no meu coração, se anima um pouco mais, ao ver o Centro Cultural Dragão do Mar ondulado de gente jovem que brinca, cria, vê exposições, assiste shows de música de qualidade. Porque enquanto isso, na Praia de Iracema, bem perto dali, o aniversário da cidade estava sendo comemorado por um show milionário do Rei, promovido pela Prefeitura local, que certamente, com essa iniciativa, imita o modelo dos grandes centros, ainda que às custas de desperdiçar o dinheiro público tão necessário para a qualidade de vida do povo.

Penso que é verdade, como diz minha filha filósofa, que o Bem pode prevalecer. Mas é preciso irrigar muito bem suas raízes em nós. Não é com demagogia que se vai salvar os meninos/ratazanas de acabarem assassinos e/ou assassinados. Nem protegeremos nossa fragilidade nos enclausuramentos dos condomínios, que proliferam por toda parte, prometendo segurança, mas escondendo o descaso e cultivando os ressentimentos. Precisamos pôr mãos à obra e bordar nosso amanhã, ponto por ponto.

Enfim, escaldada que ando pelas dificuldades já cristalizadas do Rio de Janeiro, foi uma pena não poder sair de Fortaleza cantando: “No Ceará não tem disso não, não tem disso não, não tem disso não!” como aprendi lá atrás na minha infância, quando o mundo ainda era mundo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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