25 de julho de 2011
PAULO FREIRE VIVE ENTRE NÓS *
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Estamos agora passando dos dez anos da morte de quem não pode morrer. Por isso sentimos necessidade de celebrar sua memória e sobretudo continuar e ampliar sua obra.
Li boa parte de seus escritos e tive o privilégio de participar de mais de um seminário dirigidos por ele, no tempo em que, ainda bem jovem, estava na Itália para estudar Teologia. Sua presença era sempre como derramar bálsamo sobre nossas cabeças. Estávamos nos tempos obscuros da ditadura militar e receber Paulo Freire entre nós, tão perto, nos dias de estudo e à mesa do Colégio Pio Brasileiro, em Roma, era como um facho luminoso de esperança.
Sou membro há mais de trinta anos de um Centro de Estudos Bíblicos, de dimensão nacional e de orientação ecumênica. Aí se trabalham os estudos bíblicos como instrumento privilegiado de educação popular. Nunca o CEBI poderia ter existido se antes não tivesse havido Paulo Freire, com seu método de alfabetização libertadora “Educação c omo Pr á t i c a d a L i b e r d a d e ” , alfabetizar-se, dizer, refletir e anunciar o mundo para recriar a prática política. Digo sempre que o CEBI é uma grande universidade popular, espalhada pelo Paí s , com grupos e pequenas comunidades que são como folhas de árvore que estão sempre a renovar-se, chegam até a cair e morrer, mas outras novas brotam continuamente… Se a Palavra de Deus acontece na vida de cada pes soa, não pode haver “doutores”, todos e todas nós somos sempre aprendizes, “caçadores de mim”, como canta bonito Milton Nascimento. Todos os diferentes níveis de instrução se entrecruzam, se misturam e combinam. Exegetas se assentam em roda com pessoas analfabetas, escutam e aprendem, e vice-versa. E o que de ciência conquistamos temos o dever de devolver ao povo trabalhador, pois é ele que carrega os fardos para que exista “ócio” na Academia. Mesmo quem não “estuda” ou não estuda tanto tem direito a confrontar e completar seu saber. Ter aprendido resulta em responsabilidade de servir para que outras pessoas a p r e n d am t amb ém, sob r e t u do descubram como “se aprende a aprender”. Todos e todas como quem ensina e como quem aprende, pois “ninguém educa ninguém, as pessoas nos educamos em comunhão”. Nas rodas de conversa, a vida é o centro e é aí que começa o “estudo”, pois estudar é esforço de refletir sobre as práticas do quotidiano, tanto pessoal quanto interpessoal e público.
No vocabulário de Paulo aparecem freqüentemente certas palavras que não eram e talvez ainda nem sejam tão comuns no l inguajar t ido por “ c i ent í f i co” : amor, comunhão, diálogo… É que foi uma das pessoas que mais profundamente compreendeu o Cristianismo e daí não julgou estranho passar a freqüentar aquele Marx que trazia de suas raízes hebraicas, no sangue, certas preciosidades contidas no tesouro da Bíblia, apesar do condicionamento racionalista de sua formação. Estaria longe de Paulo Freire um Marx que apresenta em seu bacharelado um estudo sobre o Evangelho segundo São João e afirma que o único horizonte de humanização da pessoa é o amor? No núcleo do Evangelho se encontram. É a partir de e em torno de essa experiência central do amor que se articulam no pensamento de Freire as influências teóricas dos campos filosófico, antropológico, s o c i o l ó g i c o e p o l í t i c o , c omo fundamento de uma pedagogia da liberdade capaz de construir de verdade um povo cidadão.
Contava ele que quando de sua prisão ficara em companhia de Paulo Cavalcanti, o famoso advogado comunista do Recife. Paulo, o católico, pediu para receber comunhão do Padre Marcelo Carvalheira, depois Arcebispo da Paraíba, hoje já emérito vivendo no Mosteiro de São Bento de Olinda. O padre orou e ministrou o sacramento, e conversou com eles na cela. Depois que saiu, Paulo, o comunista, sugeriu-lhe:
“Chame esse santo sempre de novo a estar conosco. Porque isto aqui dentro, só o agüenta quem tem fé, como você e eu”. Uma fé, sem dúvida, formulada e, em parte, vivida de maneira diferente, mas, segundo a intuição de Paulo Cavalcanti, fundamentalmente a mesma, movida pelo amor ao povo e pela esperança no futuro.
Porque compreendeu profundamente o Cristianismo, para Paulo Freire, não o dinheiro, mas a pessoa humana é o centro da política, enquanto herdeira do mundo, como se vê claramente no Novo Testamento e o proclama de maneira a lapidar a epístola do Apóstolo São Paulo aos Gálatas. É daí que vem a centralidade da “Educação como Prática da Liberdade”, aprendizagem da autonomia, quer dizer, deixar-se guiar a par t i r de dent ro, das própr ias potencialidades, pedagogia típica de O CENTRO POR DENTRO VI COLÓQUIO INTERNACIONAL PAULO FREIRE Jesus para fazer oprimidos recuperarem a dignidade e a esperança. A Pedagogia e n t e n d i d a c omo p r o c e s s o d e conscientização, de passagem da consciência ingênua à consciência crítica e, assim, as pessoas do povo se sentirem criadoras de cultura e sujeitos do processo político.
A propósito, Paulo nos explicava uma vez que o criador do neologismo “conscientização” não fora ele, mas Dom Helder Camara. Até então se falava só de “tomar consciência” de alguma coisa ou de alguma situação. Quando percebeu de que se tratava no trabalho de alfabetização e do que se passava nos “círculos de cultura”, o Arcebispo logo sugeriu que se falasse de “ c o n s c i e n t i z a ç ã o ” , t e rmo q u e expressaria muito melhor o dinamismo do processo. E acrescentou Freire: era tão bonito que até o Ministro da Educação, Paulo de Tarso, quando saía do ministério à noite, muitas vezes vinha a alguns dos círculos para sentir o prazer de assistir ao maravilhoso espetáculo de o povo “renascer”. Ah, aqueles tempos, quando parecia a muitos de nós que a nação estava sendo regenerada! É evidente que sua pedagogia nasce, antes de tudo, de uma atitude espiritual, de uma espiritualidade. Não se trata só de idéias ou teorias pedagógicas, mas de algo que nos apanha no centro da vida e é capaz de nos mover afetivamente, desde as entranhas. Uma pedagogia libertadora tem sempre como fundamento uma espiritualidade libertadora, a qual equivale a uma opção por valores radicalmente humanos e humanizadores. Mesmo que essa espiritualidade não se formule em categorias religiosas. E aqui de novo aparece sua compreensão profunda do Cristianismo: intuir claramente a coincidência radical entre Evangelho e processo de humanização, para além de credos religiosos, para além inclusive da religião cristã e, mais ainda, das instituições eclesiásticas. O que tivemos a graça de ver encarnado na figura luminosa de Dom Helder Camara, o eterno Arcebispo de Olinda e Recife, homem para além de todas as fronteiras, foi o que fez de Paulo Freire – uma personalidade radicalmente ecumênica, homem de diálogo e comunhão, capaz de enxergar transcendência na presença das outras pessoas frente a si.
Em resumo, Paulo Freire criou um processo pedagógico em vista de um processo político. Mas não se pode e sque c e r que e n x e rgou como fundamento de ambos um processo espiritual, marcadamente místico e profético, de denunciar o “status quo” das sociedades de injustiça e de optar por valores que anunciam um mundo diferente, os quais já devem estar coerentemente presentes no âmbito elementar da vida pessoal, familiar, profissional, ao mesmo tempo em que são elementos da ampla visão de um projeto de sociedade. Para ele, já era preciso desde agora viver o processo da “prática da liberdade”, mesmo no seio das sociedades de opressão, à maneira de “zonas libertadas” para testemunhar “o inédito viável” e, na própria carne, anunciar as boas-novas de um povo redimido. Já se antecipava quando vivia e era testemunha da verdade de que “outro mundo é possível”, necessário e urgente.
* Palestra proferida durante o Tríduo do Centro Paulo Freire
** Bispo da Diocese Anglicana do Recife – DAR
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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