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Conto

Sara olhava o deserto com espanto e exibia uma expressão contemplativa que dispensava apresentações. Nunca lograra simpatia por viagens de avião mas, desta feita, até se esquecera de rezar, durante a descolagem, refúgio que usava para dominar o medo que se entranhava, quando subia as escadas de acesso à aeronave. Ao seu lado, Roberto passava os olhos pela revista “News Week”. Habituado que estava a interpretar imagens de satélite para efeitos de cartografia, deixava que a atenção saltitasse entre a leitura e o encanto de Sara, que parecia viver um trecho de vida carregado de alegria e contenção, de desejo e medo, de esperança e desconfiança, de libertação e dependência, de amor e desilusão. O deserto afigurava-se-lhe como sendo um campo de brandas planícies e crescentes lunares, onde a alucinação da ceara de trigo se confundia com a esterilidade do solo, aqui e ali manchado por agrestes penhascos e vales entulhados de matacões, calhaus, areia e pó. Para Roberto, esta era uma viagem de regresso ao passado, sob a égide da História das Religiões, matéria em que ela se especializara. Ambos tinham vivido experiências matrimoniais funestas depois de Sara quebrar um namoro que se espraiou no tempo da universidade e terminou quando Rober pretendeu perscrutar os interiores das coxas dela, com os olhos de dedos mal comportados.

– Tenho estado a observar a beleza da esterilidade do deserto – disse ela esticando as pernas num gesto de descontracção. Vestia jeans de cor creme e uma blusa vermelha que trocava a elegância, que gostava de exibir, por uma postura sensual, conscientemente assumida.
– As paisagens vistas do alto são como as Sagradas Escrituras quando lidas à pressa e interpretadas à letra – retorquiu ele com intenção de a espicaçar, acrescentando de seguida – interpretar à letra mata, embora o espírito possa vivificar…, segundo S. Paulo, não é assim?
«Omne ignotum pro magnifico» dizia Tácito quando se referia à atracção que o desconhecido exerce sobre o imaginário – replicou ela, sentindo o acumular do prazer a encher-lhe o peito.
– A esterilidade é ilusória, depende dos olhos de quem a vê.
– Porquê? – Interpelou ela sobressaltada.
– Se analisasses o deserto pelo lado da ciência ou com o olhar empírico do beduíno, acabarias por reconhecer que não é um mundo tão pobre de vida como se julga. Sabias que há águas do deserto que dizem curar a esterilidade feminina?
– Por que razão a esterilidade feminina e não a esterilidade masculina?
– Os homens destas bandas não acreditam que podem ser estéreis. A culpa é sempre da mulher.
– Gostavas que eu fosse fértil? – Perguntou ela a medo.
– A ciência acabou com a infertilidade. Para remendar o mal do homem não faltam ampolas de esperma e para remendar o mal da mulher há de tudo, desde tratamentos e implantação de embriões, até barrigas de aluguer; e não tarda que cheguem os clones.
– Mas isso não é o resultado dum acto de amor.
– É verdade! É um acto de adultério institucionalizado.
– Estás a fugir à minha pergunta! Gostavas que eu fosse fértil? – Repetiu Sara, espremendo a mão de Rober com força.
– Gostava! – Exclamou ele sem hesitação –. Mas tal como tu usas dizer, tudo teria de ser natural!

A viagem ia ser longa, o clima propício a conversas e murmúrios alheados das horas, que se retirariam para que o tempo pudesse parar. Depois do Cairo e Alexandria, de Medina e Meca, de Jerusalém e Belém repousariam uma semana em Telavive, num hotel à beira-mar, antes de rumar à Índia à procura de Benares e descerem a Colombo no Sri Lanka.

Fernanda e Manuela foram as mulheres da vida de Roberto. Mas Sara tornara-se numa debutante princesa, que substituiu a inexperiência pela abundância da paixão, vivida ao compasso duma união ritmada. Tinha posto de parte as atitudes postiças, para se dedicar conscientemente ao amor, a pontos de lhe espetar as unhas quando fechava os olhos e assumia o facies do prazer, enquanto a tensão se dissipava sob a forma de contracções desprendidas do âmago da vida, até sentir a retribuição que lhe prolongava a felicidade. Mas, naquela noite mágica, perto da árvore Boo de Gautama, ela foi diferente. Teve de tudo e não teve nada, entregue à felicidade de sentir o prazer de Roberto. Não tinha oócitos a incitarem a corrida dos espermatozóides que, indiferentes, se passearam no quente das suas entranhas. Um embrião havia-se formado uma semana antes e, estranhamente, resolveu nidificar no endométrio que, desta feita, e por capricho indesmentível da Natureza, o resolveu acolher. E essa foi a revelação da viagem, cujas verdadeiras razões Sara só veio a conhecer quando, semanas mais tarde, a ginecologista lhe explicou os porquês de comportamentos que se afiguravam como sendo estranhos. Sara atingiu o tecto da felicidade quando se deu por fértil, mas guardou para si a abundância do contentamento com receio do precipício da desventura. Preferia a concepção da vida segundo Leibniz, mas a sua experiência teimava em demonstrar-lhe que Schopenhauer tinha razão e não queria impedir a liberdade de Rober, por motivos de uma gravidez problemática.

Guardou a novidade e Roberto seguiu de novo para África, a fim de cumprir um contracto com a FAO, relativo à cartografia de solos do Sudão, lugar onde a fome se espraiava entre o vento que varre a aridez da paisagem e a brutalidade dos ódios étnicos. E, sob o peso da ansiedade inserta na imensidão do inesperado, Sara não resistiu ao desejo de o ir esperar ao Aeroporto de Lisboa, onde aguardava pela personificação do espanto, quando ele deparasse com a filha de três meses ao colo da mãe que fora estéril. O silêncio é ocasionalmente a imagem do vislumbre, e o silêncio que se fez naquele encontro de três vidas, emergia de uma amálgama de emoções e de sentimentos entretecida não só pelo amor, mas também pela dúvida. A dúvida sempre acompanhou a vida de Roberto. Sabendo que se tornara estéril devido a um estilhaço de granada ocorrido durante uma emboscada sofrida na guerra colonial, era-lhe difícil aceitar a possibilidade de voltar a produzir a abundância de espermatozóides indispensável à fecundação. O milagre dela ainda admitia, mas dois milagres, era excesso de indulgência. Sara era uma fervorosa católica, mas ele era agnóstico desde a raiz do pensamento às hastes da frutificação. Seria mesmo possível?

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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