Quando coloquei os pés em Brasília pela primeira vez – lá se vão quase 25 anos – pensei comigo mesmo: as crianças daqui devem ser muito felizes. Senti uma inveja retardatária.
Os anos passam e, durante todas minhas viagens a trabalho para cá, sempre carreguei o mesmo pensamento. Crescer em Brasília deveria ser o paraíso. Contudo, por estar sempre a trabalho, não tinha tempo para nada. Muito menos para observar se as crianças daqui eram mesmo felizes.
Hoje, morando no Plano Piloto pela segunda vez, não sei dizer se elas são mais felizes do que as outras crianças. Agora, com tempo para observar mais de perto, sempre me pergunto: onde estão as crianças de Brasília?
Não as vejo em lugar algum. Olho para tanto espaço livre e não as encontro.
No Brasil, nunca conheci nenhuma outra capital com tanta área verde e terrenos livres para correr, brincar, jogar bola, rodar pião e andar de bicicleta com segurança. Na minha infância, seria um paraíso.
Aliás, na adolescência também seria. Uma das maiores dificuldades, quando adolescente, era achar um descampado para jogar bola sem medo de levar um tiro de sal na bunda, ser assaltado, atropelado ou transformado em almoço de cachorro brabo. E a gente invadia a rua mesmo assim. No meio da pista, entre os carros, ao lado do lixão, atrás da estação de metrô. Em qualquer buraco.
O cenário podia ser horrível, mas na imaginação da gente era o Maracanã. Aqui em Brasília, para onde jogo o olhar, já consigo me visualizar com dois chinelos para fazer a barra do gol, uma bola dente de leite e outros três moleques descalços correndo atrás da gorducha. Uma Seleção Brasileira.
É como se cada quadra residencial tivesse o seu próprio Maracanã de verdade. Com gramado e tudo. Só falta jogador. Um cenário impossível de acontecer em qualquer outra cidade.
Na primeira vez que vi de perto o Congresso Nacional, não dei a menor bola para a arquitetura do lugar. Só tinha olhos para a imensidão daquele gramado verdão, quase brilhando.
Tendo passado a maior parte da minha infância e adolescência no centro do Recife, uma área verde, por menor que fosse, era como um oásis no meio do deserto. Por mais qualidades que a capital pernambucana possa ter, planejamento urbano certamente nunca foi uma delas.
A gente jogava bola na areia da praia, no barro, no cimento, entre pedras, paus e até cacos de vidro. Perdi as contas de quantas vezes cortei os dedos e rasguei o pé por causa de cacos de vidro misturados entre os pedregulhos. Além de dividir parte do descampado com urubus e ferro velho.
Em Brasília, para onde olho tem grama. Não é um campo de futebol, mas é grama. Verdinha. Arrumada. Se a grama falasse, diria para todas as crianças: por que vocês não usam a gente depois da escola? O que tanto vocês fazem o dia inteiro? Todos os dias?
Às vezes, passo na frente do Congresso só para ver aquele gramado. Vejo um time de futebol… americano. E todos adultos. Vejo (poucos) turistas descendo em tobogã no gramado e até mesmo algumas crianças – de outras cidades – dando cambalhotas. Desconfio que nenhuma delas é de Brasília.
Onde será que elas dão cambalhotas e brincam de Jaspion?
Talvez no Pontão do Lago Sul. Mas lá só encontro noivas tirando retrato, playboys de camiseta apertada e loiras de shortinhos e minissaia. E crianças que não desgrudam dos pais nem para apostar uma corrida até o coqueiro, dentro de uma rede imaginária de proteção.
Nas quadras, não consigo ver meia dúzia de crianças brincando na rua. Se não fosse a diferença na arquitetura, lembraria minhas caminhadas pelas periferias abandonadas da Cracóvia.
Talvez me digam que Brasília nunca foi o paraíso das crianças. Que tudo isso é uma grande besteira. Um romantismo barato. Uma frustração que perdeu o prazo de validade. Que os tempos são outros.
Verdade, talvez seja apenas o paraíso dos concurseiros e concursados. Mas onde estão os filhos de tantos concursos? Os filhos dos funcionários públicos? Estão todos no shopping? Jogando Playstation em casa? É uma curiosidade minha, talvez egoísta, porém honesta. Uma curiosidade sem a consultoria do Palocci.
De certo modo, tento entender. Também já fui viciado em fliperama de bairro. Mas chegava uma hora em que as moedinhas acabavam e a gente ia para rua fazer qualquer coisa. Às vezes, qualquer coisa significa fazer nada. Porque não tinha nada para fazer. Mas sempre havia uma árvore para subir ou um vira-lata para correr atrás.
Hoje, parece que não existe mais criança para subir em árvore em Brasília. Será que todos os funcionários públicos nasceram aqui?
Será que eles já se esqueceram de como era difícil achar um gramado para bater uma pelada na cidade onde nasceram? Aposto qualquer coisa que a maioria deles passou a infância inteira sem nunca jogar bola na grama. Será que os pais e avós de Brasília não levam mais as crianças para brincar na rua? Será que em Brasília só existe o Parque da Cidade aos domingos?
Não faço ideia de para onde estão levando as crianças de Brasília. De como estão ocupando o tempo delas. Deve haver algum lugar secreto, alguma quadra especial onde as crianças de todas as outras quadras se encontram para escalar dois times e um na reserva. Para fazer olimpíada. Campeonato de peteca e bola de gude.
Não sei. Só sei que, se as crianças de Brasília gostam tanto de ficar em casa ou ir para shopping, proponho uma troca.
Vocês levam as crianças daqui para cidades com shoppings maiores – até Recife e Salvador têm shoppings maiores e melhores do que Brasília – e nós trazemos as crianças das outras cidades para conhecer essa imensidão de áreas livres e gramados vazios.
Depois de um fim de semana, pedimos a opinião delas se é melhor jogar bola e dar cambalhota em Brasília ou no concreto da cidade delas. Para cada dia de brincadeira na rua, elas ganham um dia liberado com esse tal de Playstation.
Acho que seria uma troca justa. Um plebiscito infantil.