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Retorno a Petrópolis, 20 anos depois de deixá-la, como lugar de moradia, e me disponho aos reencontros com o melhor que esse lugar oferece. Vagueio em busca de signos de minha infância, de minha adolescência, num tempo em que eu de fato vivi a cidade, antes de apenas servir a ela.
Na livraria, que me acolhe para organizar meus Grupos de Leitura, fico sabendo de uma sessão de “Cinema com Lacan”. O filme a ser exibido – Cria Cuervos – me estimula a experimentar uma possível releitura, tanto tempo depois. Na programação impressa que me entregam, destaco o nome de um antigo amigo: Antonio Cláudio Gomes – um arte-educador- que fará o coordenador do debate, entre psicanalistas, depois da sessão. Tal mix me anima e eu vou. Adoro rever o filme, mas apenas aceno de longe para o amigo, porque parto apressada, sem chegar a acompanhar o debate. No entanto, a apresentação que ele faz do filme, antes do início da sessão é precisa, cuidadosa e eficiente. Sem dúvida ele se dedicou generosamente, preparando informações históricas, estimulantes para os ouvintes.
No dia seguinte, meu netbook me entrega um recado de Antonio Cláudio. Ele lamenta que não nos tenhamos falado, na véspera. Explico-lhe, num recado que cai no vazio de uma interlocução já interrompida pelos mistérios internáuticos, a minha saída apressada… Teremos outras oportunidades, lhe asseguro. Estou de volta à cidade…
Duas semanas se passam. Volto ao mesmo lugar, disposta a estimular a iniciativa que julgo exemplar: cinema de boa qualidade, sala excelente, filmes cuidadosamente selecionados. E eu bem sei, como, nesta cidade, é difícil sobreviverem iniciativas culturais de valor!
Hoje, o filme é “Cinema Paradiso”. Recorda-me apenas certa emoção que me despertou outrora e o tema, que me parece ser o amor ao cinema. Tantos anos depois, já não posso precisar o enredo. Mas vou, determinada, imaginando reencontrar por ali, sexta feira à noite, um dos idealizadores do projeto, meu amigo Antonio Cláudio. Quem sabe hoje conversamos um pouquinho?
A sala quase vazia me espanta. Uma jovem, da casa, explica a um casal a dinâmica do projeto de cinema. Animo-me imediatamente a participar da conversa, me oferecendo a colaborar na divulgação. – – Um absurdo uma cidade repleta de jovens que se espalham pelas ruas, andando a êsmo, perdendo essa oportunidade maravilhosa de assistir um bom filme! – eu digo. O papo gira em torno das dificuldades da valorização dessas iniciativas em Petrópolis e eu quase já me inflamo, como nos velhos tempos, quando chega a hora de iniciar a sessão. O casal avisa que só veio para assistir ao curta que precede à fita principal. Aline, a moça que tão gentilmente nos apresentava a casa e o projeto, se pondo, solícita à disposição de nossa voracidade de “novos” moradores, fala então. Ela quer oferecer a sessão de hoje como homenagem a um amigo, que acaba de falecer. Alguém que trabalhava no mesmo projeto. – Quem? pergunto eu, não querendo acreditar que já adivinhava a resposta.
…………………………………………………. aqui a fita se rompe ……………………………………………………………….
Antonio Cláudio voltou pra casa. Hoje cedo. Depois de lutar pelo menos 5 anos pela recuperação de sua saúde, não resistindo à uma última tentativa, com um transplante de célula tronco, Antonio Cláudio partiu.
………………………………………………… a fita volta a rodar …………………………………………………………..
O filme começa, então, e eu revivo (como em suas recordações, o protagonista da história) meu primeiro encontro com o menino Antonio Cláudio, que eu brincava de chamar de Tony. O relato está lá, na apresentação de seu livro de crônicas sobre Educação, assinada por mim: ele chegava no portão de ferro da Escola Viva, nos idos 74, ali, onde a Escola começou, na rua Silva Jardim, e ficava olhando os teatrinhos da colônia de férias. Era mais um menino/adolescente carioca, passando o verão na cidade… Mas diferente dos demais, interessado no movimento de uma escola de crianças. Um dia pediu para entrar. Depois pediu para ajudar. Assim, acabou participando. Voltou nas férias seguintes e tornou a se engajar. Já residindo aqui, aproximou-se mais e mais… Nesse tempo, se decidiu por estudar para ser professor. Logo chegou a ser professor da Escola Viva. Depois trouxe sua primeira esposa para trabalhar conosco. E, então, trouxe Ian, seu primeiro filho, para ser nosso aluno… Seguimos, assim, entrelaçando nossos sonhos de um mundo melhor.
Depois ficamos mais distantes, geograficamente. Eu me fui da cidade e acompanhei apenas de longe suas andanças… Seu trabalho em educação, em arte, na política… Sempre um doador, insistentemente procurando seu verdadeiro lugar, as parcerias, insistindo em acreditar, em lutar.
Como o menino de “Cinema Paradiso”, Antonio Cláudio sofreu muito por amar demais. Não teve, talvez, a mesma sorte que o menino Totó, da história do filme, que encontra o mestre verdadeiro que lhe diz: – Vá embora! Siga seu proprio caminho! Ouviu, talvez, apenas a história romântica de ficar 100 dias e 100 noites paciente e zelosamente zelando pelo seu sonho, esperando que a janela desejada se abrisse, pra lhe permitir encontrar a felicidade…
Impossível entender porque a vida desenha essas situações. De repente, eu estava ali, naquela sala quase vazia, durante as quase três horas da projeção, sendo, ora o Alfredo, ora o Totó ealternando a interpretação desses papéis com Antonio Claúdio. Ia lembrando de minhas conversas sobre Educação com ele e vendo, como numa das cenas finais do filme, os destroços de muitos de nossos sonhos… A emoção veio forte, fazendo-me sofrer por nossas limitações todas, de uma só vez…
Ao morrer, Alfredo, o mestre, deixa para Totó, como último presente, um rolo de filme montado com todas as cenas amorosas censuradas (pelo padre) nos muitos filmes que projetara, pela vida afora… Aparece, assim, um filme particular e único, composto apenas de incontáveis beijos e carícias… Uma celebração ao melhor da entrega e do prazer! Um último voto de confiança na vida!
Penso que foi isso que Antonio Cláudio nos deixou de presente com esse poderoso projeto de cinema, que ajudou a implantar: seu derradeiro voto de confiança em Petrópolis, a cidade que ele amou tanto, que escolheu para dedicar sua arte, a quem entregou sua juventude e seus talentos. Um verdadeiro e belíssimo mosaico feito com os múltiplos caquinhos recolhidos dos sonhos desfeitos, por onde a luz possa passar multicolorida, enfeitando mesmo os dias mais cinzentos que possam vir à frente.
Caberá a quem fica, honrar a herança e levá-la adiante, agora que, enfim, Antonio Cláudio está em casa.
03 de junho de 2011
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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