Verão de 2001. Guaiú. Uma pequena localidade à beira-mar, na Bahia, uma aldeia de pescadores. Guaiu parece longe de tudo, é verdade. Mas fica próximo a um dos maiores centros turísticos do Brasil, que é Porto Seguro. De férias, aproveito cada situação o melhor que posso. Gosto de conversar com as pessoas, de flanar, de olhar em volta. Em três dias, andando daqui pra lá, para ir à praia, procurar um telefone público ou só para passear, observando com atenção, percebo que as pré-adolescentes, daquele lugar, muito cedo são “paqueradas” pelos homens adultos. Diariamente, de tardinha, “desfilam” faceiras à frente do bar, onde os homens se reúnem pra beber. Vejo também que o número de meninas grávidas é muito grande, ressaltante.
Um dia, esperando para falar ao telefone, vejo uma moça bem jovem, ventre de final de gravidez, chorando muito e, exaltada, pedindo, quase implorando, a um homem que, do outro lado da linha, não parece querer atendê-la. Ela fala sobre o bebê que já está para nascer e para quem ela não tem ainda nenhuma roupinha. Pede dinheiro, querendo despertar nele a responsabilidade de pai. Ao terminar a ligação, procuro falar-lhe. Ela mal responde e se afasta, soluçando. Busco saber quem é. É um menino quem me dá as informações. Muito falante, quer de mim os cartões telefônicos usados, que coleciona e, por eles, vai ficando ali, na porta do bar, ouve tudo que se diz e sabe contar todas as histórias locais. Assim, com sua tagarelice, fico sabendo quem é a moca, de quem é filha, quem é o pai do bebê, personagens que ele qualifica com adjetivos próprios, formando uma crônica comovente. Um verdadeiro repórter! Fala também de si. É filho da dona do bar. Sua mãe vive só e trabalha no balcão. Ele, eu percebo, vai ficando ali, durante o dia, aprendendo tudo o que pode, com o pouco movimento a sua volta. A mãe tem um namorado, mas que esse não é dali; vem só de vez em quando. Sobre seu pai, nenhuma história.
Mais tarde, ao buscar o ponto do ônibus, paro numa casa à beira da estrada, onde vejo uma mulher muito jovem gravidíssima. Exasperada, gritando, ela bate num menino muito pequeno. Impossível não me apiedar de ambos, tão transtornada ela parece! Vou a seu encontro, para acudir a criança. Ela me atende e, respondendo a minhas perguntas, vai contando. Diz que é casada e já tem dois filhos: o que escapou das pancadas e um outro, bebê ainda (que chora lá dentro). Afasta-se e volta, com o nenêm ao colo, continuando a falar: o marido, bem mais velho que ela, é pescador, ausenta-se muito e ela fica muito cansada, cuidando de todo o serviço sozinha. Diz-me que não queria, mas que “pega” filho fácil. Falo-lhe sobre métodos de evitar a gravidez e sobre a possibilidade de receber a pílula, de graça, no Posto de Saúde Municipal. Ela me responde que a “doutora” só vai ao Posto às quartas-feiras e ela não pode ir lá, tomar a pílula, toda semana. Percebo que essa mulher/criança não tem nenhuma informação sobre como se usa anticoncepcional. Explico-lhe e encorajo-a a ir até o Posto, para garantir-se de não engravidar, após o próximo parto. Ela não se compromete comigo. Apenas ouve, parecendo incrédula.
Passa das 12 horas no dia seguinte, quando chego à casa da moça que falava ao telefone, para entregar-lhe roupinhas para seu bebê. A casa, indicada pelo pequeno repórter, está toda fechada. Sol forte, faz muito calor e eu percebo que tem gente, porque escuto a televisão, com o som máximo chegando à rua. Depois de muita insistência, sou atendida por uma menina. Vejo, lá dentro, sentadas, uma mulher que parece idosa e duas outras meninas, assistindo à TV. A criança que me abre a porta, diz que a moca grávida que não está ali. Está trabalhando numa outra casa. Deixo os presentes e saio, decepcionada, triste e impotente.
Nessa época, eu estou anêmica. Tenho miomas, que aumentam meu sangramento menstrual. Dizem que miomas são sintoma cada vez mais freqüente, até em mulheres muito jovens, causados pela impossibilidade da mulher moderna lidar, livremente, com sua potência para a maternidade. É, talvez, por um misto de desejo e necessidade, que sinto uma forte vontade de comer ovos de galinha caipira. Imagino, a princípio, ser fácil encontrá-los, num lugarejo como esse, de casinhas baixas, com quintais, com árvores e relva farta. Passo a perguntar. Primeiro ao vizinho:
– O senhor tem ovos para vender?
– O quê?
– Ovos de quintal.
– Quer comprar o meu quintal?
– Não senhor. Quero ovos frescos, de galinhas criadas soltas, no quintal.
– Ah! Não senhora. Ovos, só no supermercado.
Vou ao supermercado. Sou informada de que lá só vendem ovos de granja.
– Ninguém aqui come ovos de quintal. Todos compram os ovos para comer: ovos que vêm de longe.
– Mas eu vejo galinhas pelos quintais… – tento argumentar.
– É, tem galinha sim, mas não tem ovos. Eu não conheço ninguém que tenha ovos pra vender.
Incrédula, tomada por uma obstinação nascida do aparente absurdo da situação, passo a ir de casa em casa, à procura de ovos caipiras. Acabo descobrindo que ninguém recolhe os ovos das galinhas. Nem se preocupam em ver onde elas põem seus ovos. Pela lógica, concluo, deve ser assim: de repente aparecem os pintinhos. Quando viram frangos, talvez sejam comidos e as galinhas são poupadas, até que fiquem mais gordas, quando mais velhas. Aí vão para a panela. Viram canja de mulher parida, costume local. Assim, as pessoas vão vivendo… Comprando no mercado os ovos de granja, que lhes parecem os melhores. Não adianta falar-lhes dos antibióticos que, nas granjas, são dados às aves, desde pintinhos; nem dos hormônios, que já vêm nas rações; nem do cativeiro enlouquecedor em que são postas as galinhas, a tal ponto que adoecem facilmente, têm as cristas descoloridas e põem ovos de gemas desbotadas e cascas muito finas, enfraquecidas.
Depois daquela longa pesquisa inútil, fico sabendo que a dona do armarinho talvez pudesse trazer-me ovos de quintal, mas só na semana seguinte. Ela tem um sítio e me venderia os ovos caipiras, se eu encomendasse e pudesse esperar, porque só vai ao sítio uma vez por semana e não costuma trazer ovos para cá. Desisto do ovos, porque só tenho mais um dia de férias, mas não posso deixar de interligar os fatos.
No Guaiu, como em quase todo o Brasil, não se cuida da Vida. Dessa forma, ovos e óvulos são abandonados à própria sorte. Ninhos não são preparados para o cuidado com os recém-nascidos. Não são apenas as galinhas ou as meninas e as mulheres que são desrespeitadas. É o próprio continente da Vida (ovo, ovário, útero, fêmea) e a partir dele, toda a continuidade do processo. O bebê que não terá pai que o reconheça e acolha é o menino que apanha da mãe, enlouquecida pelo desespero, será o rapaz que, amanhã, estará bebendo cachaça na porta da venda e se tornará o marido desencantado, que vai envelhecer sem esperança, afastando-se de sua casa e de sua mulher, que passa a não reconhecer mais.
Quando não se valoriza a Vida é sempre noite, ainda que o sol brilhe lá fora. Aí, a hipnose da TV é apenas mais um sintoma dessa doença mortífera.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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