professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *
Nas sociedades ocidentais, em função de uma longa tradição filosófico-religiosa que fragmentou o ser humano, dissociando principalmente a dimensão espiritual da corpórea, pensa-se, ainda hoje, que o corpo humano é um objeto relevante apenas para as áreas do saber da biologia ou da fisiologia, e que sua realidade material deve ser observada de maneira independente das representações sociais ou das questões que são postas pelas ciências humanas. Assim, o pensamento ocidental não parece, neste particular, mais ‘racional’ que o das sociedades ditas ‘primitivas’, que consideram o corpo uma das dimensões constitutivas da ‘pessoa’ e um elemento entre outros no seio de sistemas simbólicos variáveis.
Esta perspectiva unitária, integradora, relegada pela tradição do Ocidente, também não aparece na concepção do pensamento moderno, que trata o corpo como uma totalidade autônoma, passível de ser desconectada do todo pessoal ou social. O que se pode perceber é que a concepção moderna, que também dissocia o corpo da alma e do espírito, nos distancia da saúde possível, pois nos despedaça, nos faz perder a coesão, a harmonia e a transparência.
O ilusório é pensar que uma fragmentação epistemológica deixará intactos o indivíduo e a sociedade. Na verdade, ela acaba separando os sujeitos do meio ambiente, demarcando de forma incisiva as fronteiras entre ambos e supervalorizando os conflitos que aí se estabelecem. Esta separação é diabólica e alienadora, pois além de ser divisora em si, também impede o que vincula, o que unifica e o que restaura a inteireza vital.
Não se pode separar a subjetividade da corporeidade, pois fazê-lo seria incapacitar-se para uma compreensão mais ampla da vida, reduzir-se ao olhar fechado do especialista, à estreiteza e à minimização da existência, abrindo caminhos para a intransigência, para o dogmatismo violento que assassina o milagre da novidade do existir.
A Revelação cristã confirma essa tese e na festa do Corpo de Cristo é importante revisitá-la e rememorá-la. O corpo humano está no centro da revelação cristã, no momento em que se trata de algo que foi assumido pelo próprio Deus, na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo. A Encarnação do Verbo, que toma corpo humano e habita entre nós, embora carregue consigo uma forte dimensão kenótica e humilhante, de acordo com as palavras do hino da Carta aos Filipenses, por outro lado eleva e engrandece a corporeidade humana, resgatando-a de uma vez para sempre, pois a divindade a abraça por dentro.
A corporeidade humana e carnal vulnerável de Jesus é o lugar da presença e da manifestação de Deus em meio à humanidade, antes localizada no templo. Jesus é, portanto, o verdadeiro Templo e, doravante, o culto se ligará à sua pessoa. O Templo se tornou caduco, não é mais o lugar do encontro com Deus. Suas festas não são herdeiras de toda a tradição de Israel. É chegada a hora do verdadeiro templo ser conhecido, o verdadeiro local onde está a glória de Deus.
O mistério da Encarnação coloca o próprio Filho de Deus e a corporeidade humana por ele assumida em meio à violência e ao pecado presentes no mundo. Neste sentido, Jesus, em sua vida e em seu caminho histórico, não se encontra preservado nem invulnerável às ambiguidades que implicam viver num mundo onde a paz ainda não é uma realidade plena. Jesus, além disso, entra na história sempre recomeçada de um povo ingrato e indócil, de má-fé, que não quer dar a Deus o que é de Deus. Assume em seu corpo e em sua vida a visão e a experiência dos profetas, rejeitados, perseguidos.
O corpo é para o Senhor e o Senhor para o corpo. Oferecer, em suma, o próprio corpo, a própria pessoa em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. O Mestre mesmo dá o exemplo supremo com a maneira pela qual vive e sofre o processo que o levará à Paixão e à morte. Seu Espírito derramado após Sua Ressurreição indicará que este é o caminho e a vocação da corporeidade humana à luz da fé cristã.
Habitando na corporeidade humana, o Espírito faz do ser humano seu templo, sua morada. O Cristianismo traz, entre as grandes novidades que introduz na história da humanidade, o fato de que o eixo do Sagrado é deslocado do Templo, lugar de culto e de oração tradicional, para o ser humano, para a corporeidade humana, para toda carne. O destino do corpo de Cristo é o nosso destino. Corpo oferecido pelo serviço a Deus e aos outros, atravessa o sofrimento da realidade e ressuscita incorruptível e glorioso. O sacramento da Eucaristia realiza isto na fragilidade humana que é a nossa. Celebrando a festa do Corpo de Cristo fazemos memória e atualizamos esse mistério que é culminância da fé e centro irradiador da antropologia e da teologia.
* Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
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