professora do departamento de teologia da PUC-Rio *
O mundo está desencantado, dizem os sociólogos. Já não tem mais a povoá-lo uma miríade de deuses, seres fabulosos e milagrosos, fadas, duendes, semideuses e demiurgos. A modernidade defrontou o ser humano com a dura realidade que começa e termina biologicamente no recorrente ciclo do nascer, crescer, desenvolver-se, procriar, declinar e morrer. E parece longe a exclamação do filósofo Tales de Mileto, 5000 anos antes de Cristo: “O mundo está cheio de deuses”.
O mundo não está cheio de deuses, não se encontra mais habitado pela Transcendência que o “encante” e maravilhe. Está desencantado e finito, sem nada que permita ao ser humano deslumbrar-se, sonhar e autotranscender-se. No entanto, há brechas nesta implacável imanência em que se transformou o mundo: o amor humano, muito especialmente o amor entre o homem e a mulher. Por isso, o dia dos namorados relembra isso, que é uma das mais maravilhosas coisas da vida: namorar, ou seja, segundo o dicionário Houaiss, encantar-se por outra pessoa e empenhar-se por sua vez em encantá-la.
É fato que o namoro hoje é bem diferente de antes. Tudo já é experimentado de antemão, os preâmbulos (tão bons e encantadores, meu Deus!) são dispensados. Vai-se direto aos finalmente, apressando demais o ritmo de algo que deve ser fruido a cada etapa, degustado e saboreado. Mas não importa. Seja ou não assim, não ajuda tampouco chorar sobre leite entornado e viver nostálgico dos “bons tempos”. Que, aliás, não eram tão perfeitos, pois também apresentavam seus problemas.
Em todo caso, o namoro continua acontecendo. Ou seja, as pessoas (pelo menos algumas) continuam se encantando, se enamorando, passando noites acordadas só para pensar na pessoa amada. Os corações ainda batem em ritmo acelerado ao ver aquele que enamora e que passa a ser único em meio a qualquer multidão. Ainda desejam viver a aventura do enamorar-se, do apaixonar-se, do encantar-se. E de “curtir” profundamente este amor, no qual a aproximação física e psíquica, baseada sobre uma atração recíproca, e que cresce com a convivência e o mútuo conhecimento, aspira à continuidade.
Em tempos de volatilidade e relações líquidas como os nossos, investir no namoro, acreditar no amor, valorizar a relação firme e profunda é certamente um belo desafio. Excitante e estimulante. Pois nem só de suspiros e olhares sedutores e mãos geladas e coração batendo vive o namoro. Vive também de entrega profunda , de fidelidade reiterada e confirmada, dia após dia, de confiança renovada, de perdão doado talvez mais de uma vez. Pois se não se é capaz de se perdoar a quem se ama, se o orgulho é mais forte do que o amor, como essa relação espera sobreviver aos muitos embates da vida e à finitude e fragilidade dos parceiros?
Namorar é bom. É mesmo uma das boas coisas da vida. Namoremos pois. Mas levando a sério o namoro. Fruindo de seu encantamento, porém também sabendo que até o encanto tem um preço. E o preço é o de estar muitas vezes disposto a dar mais do que receber. A perdoar mais de uma vez. A viver o encantamento da paixão mas também a doação da maturidade, quando a paixão se transformou em calmo sentimento de companheirismo, amizade, dedicação.
Um mundo desencantado? Não enquanto houver namorados. Não enquanto houver pessoas capazes de se apaixonar e não considerar a paixão um episódio momentâneo, mas como uma graça recebida que deve ser cultivada com muito amor e carinho. Feliz dia dos namorados a todos e todas que podem nomear o amor que sentem. É uma graça infinita que deve ser vivida com responsabilidade.
* Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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