A obediência me agride e me transforma em coisa. Não quero ter forma, quero ser amorfa, indefinida, imprevisível, indescritível. Quero ser eu sem definições, sem marcas de alegria ou de tristeza sem movimentos medidos ou pensados. Quero ser vento, mar, o que é livre e indiferente às ordenações das horas e da vida sem forma, desenho, modelo.
          As ordens me chegam dissimuladas, encapuzadas como os verdugos e me mandam obedecer. Recuso. Conservo a rebeldia que herdei no paraíso. Não posso parar para obedecer. A obediência é um semáforo de cores confusas que me deixam daltônica, cega, desenfreada.
          Em qualquer parte do mundo onde quer que exista uma partícula de mim, aí estará a rebeldia, a força contrária que me avisa do perigo. Resisto. Guardo comigo a alma transgressora.
          No fundo dos abismos uma voz sacrifica minha consciência. O algoz, o dono, a sombra se insinuam como um ladrão, um animal devorador dos restos de si mesmo, verme que espera a morte para viver. Assim me sinto quando obedeço, digerindo emoções.
          Amo o pensamento livre, vagabundo, inconseqüente, inconstante, irreverente e louco. Com ele viajo sem que ninguém me leve, amo perdida no tempo.
          Não açoites minha alma com os ventos de agosto nem a amordaces. Não a queimes nem a envenenes com a peçonha da serpente. Não fures meus olhos para ocultar mentiras.
          Abro minhas portas, sou livre. Jogo o meu sorriso na inveja alheia. Tenho nas mãos o suor do teu rosto. Nos movimentos do corpo a essência de tua alma. Este é o meu prazer. Juntos escrevemos o fim do mundo num grito de prazer, de vida enquanto morremos.
          Passaram veredas, caminhos, estradas estreitas, passaram estrelas, sóis e luas, palavras, soluços, abraços.
          E começamos, então, a ver estrelas.
          Sobre a mesa a Bíblia, os Mandamentos, o Catecismo, o Missal, instrumentos de tortura das pessoas boas. Ai, como essas pessoas me fizeram mal. A virtude delas me perseguiu pelos caminhos do mundo, destruindo as ilusões de Pierrô e Colombina.
         Vestidos de Santos me fantasiaram de anjo, disfarçados nos breviários e sob roupas de cardeais. Celebraram a morte no roxo da Semana Santa em nome do Pai e do Filho.
          Quero resgatar a alma sufocada num corpo aceso, torturado pelas virtudes presas, alma criança que não sabe da morte nem da velhice, sonho borrado pelo tempo.
          As macas das valsas, dos versos ditos por almas leves em noites de maio possuíram o amor e a vida.
          Quero a liberdade de ir e voltar, viajar de olhos fechados pelas calçadas, pelos caminhos, pelos becos alcoviteiros da cidade perfumada que ainda hoje tem cheiro de pecado, de amor, de desobediência.
          Os que obedeceram nunca saberão.
Obs: Texto retirado do livro da autora – Pecados de Areia
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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