Estamos em Barcelona, no sítio chamado de Barceloneta. De um lado, a marina, com seus bonitos barcos a empinar para o céu um bocado de mastros, dando um contorno diferente a paisagem. De outro, restaurantes, debaixo de enormes toldos, onde turistas se deleitam no jantar, ao sabor de bons vinhos. O céu ainda não se cobriu com a toalha da escuridão, apesar das oito e tanto da noite, lá. Entre a marina e os restaurantes, uma área enorme, bem calçada, na qual alguns africanos estendem suas cobertas com bugigangas dirigidas aos turistas.
Vladimir fica indignado quando observa os vendedores levantarem suas toalhas, com os objetos dentro, e se retiraram, apressadamente, ante a aproximação de um guarda, de moto. Tento explicar a presença da existência, provavelmente, de norma administrativa a proibir a presença de camelôs em locais públicos, visando a aplacar a revolta que domina a sua cabeça de dez anos, ante o recuo apressado de cinco ou seis africanos com seus sacos de mercadorias.
Digo saco porque, depois do jantar, o céu já exibindo a cor escura das noites, os vendedores, de volta aos seus lugares – onde ficam até que outro guarda se aproxime -, o que me leva, no caminho de volta a estação de metrô, a parar, comprar alguma coisa (adquiri um leque artesanal por dois euros) a fim de observar a forma como a toalha é estendida no chão, os objetos colocados de maneira que, no momento de perigo, com a aproximação do guarda, o vendedor precisa apenas acionar quatro cordões para a toalha se transformar em um saco e facilitar sua retirada. Nenhum objeto fica fora e a fuga se faz rapidamente.
Volto a encontrar com outros africanos, ofertando bolsas, relógios, carteiras, leques, entre os diversos objetos, quer caminhando entre os turistas, quer em barracas, em Pisa, na Itália, nas imediações do local onde a torre inclinada se localiza, despreocupados, agora, da ação policial. Depois, na Praça da Figueira e na Praça do Rossio, em Lisboa, torno a me deparar com vendedores africanos, no comércio ambulante, desta vez, a oferecer, num português que dá para ser entendido, pulseiras de osso e de outros materiais, confeccionadas artesanalmente.
Ontem, o branco foi buscar o negro na sua aldeia para ser escravo na terra distante. Liberto, séculos e séculos depois de tanta escravidão, o negro ainda luta para se equilibrar na vida, assumindo, uma pequena parcela, a condição de camelô de olho no turista. Ou seja, para esta camada, a liberdade ainda não foi total. No fundo, é a luta do africano, desterrado de sua pátria, pela sobrevivência na terra do branco, que a gente, de longe, não faz a menor idéia do drama que ainda hoje é vivido.
Publicado no Diário de Pernambuco
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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