De Guardião a Vilão da Constituição.

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 “Os poderes constituídos da República Federativa do Brasil não podem dispor sobre o Poder que sobre eles dispõe: a Soberania do Povo.”

   (Ministro Carlos Britto, quando professor no Curso de Direito da UFS)

          Como é do conhecimento de todos, esta semana, no julgamento da ADI 4277 e ADPF 132, da Relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto – o Le sage sergipano –, o STF reconheceu a união homossexual como entidade familiar. O resultado do julgamento é, realmente, histórico. O modus operandi e o conteúdo das argumentações dos Ministros – especialmente do Relator – são ainda mais históricos, porque nossa Suprema Corte chegou, assim, ao auge do seu criacionismo (ou “invencionismo”) judiciário; ao clímax do fenômeno que tenho denominado de “judicialização do poder constituinte originário”, passando, desse modo, de Guardião a Vilão da Constituição. Como eu disse na rede social “Facebook” no dia do julgamento: “O que está em jogo hoje no STF, sobre a união gay, não é tanto o mérito em si das ADIns, mas a postura da Corte em servir, ou não, de ‘atalho legislativo’ ou ao ‘ativismo judicial. Com o Ministro Carlos Britto, aprendi: ‘O STF não pode dispor sobre o poder que sobre ele dispõe: a ‘super omnia’ do povo’. E o povo, na Constituição Federal de 1988, disse NÃO à união gay. Espero que meu ex-professor vote como os “Sages” (sábios) do “Conseil Constitutionnel” francês.’”. Infelizmente, o Profº Carlos Britto não honrou os seus próprios ensinamentos, cedeu ao inexcedível lobby do movimento gay, votou de modo “politicamente correto” e com vistas ao recebimento dos encômios e aplausos dos que não têm a noção exata do que aconteceu neste julgamento. Mas a sociedade precisa saber o que, de fato, aconteceu e o que está por trás de tal decisão. É o que tentarei mostrar e explicar neste artigo. Vejamos, pois.
          Em uma série de artigos que publiquei em 2009 – intitulada “STF versus NAÇÃO BRASILEIRA: a quem pertence o Poder Constituinte?” – demonstramos que a Constituição Federal não deixa dúvidas a respeito de “a quem pertence o Poder Constituinte”. Pertence à Nação Brasileira, à sua realidade fáctica e presencial, o povo. Como corolário dessa assertiva, ao STF, cabe, estritamente, ser o guardião dos princípios e preceitos fundamentais que ela, a Nação, definiu no texto constitucional originário, sem ir além, aquém ou fora dos parâmetros valorativos estabelecidos. Assim, o STF, ao decidir sobre questões que envolvem o complexo ideário moral e sociocultural da denominada consciência nacional, os seus mores maiorum civitatis (o bem, o belo e a verdade da sociedade, em termos conceituais e comportamentais), não pode fazê-lo com implicações de ordem legiferante e mutacional ou de construção e desconstrução “legislativa”, sob pena de estar incorrendo no gravíssimo e ilegítimo fenômeno da “judicialização do Poder Constituinte Originário”. Isto é, em uma linguagem mais simples: sob pena de estar usurpando o poder que só o Povo tem, seja diretamente, seja através dos seus representantes eleitos. Em síntese: Ministro do STF não é, e não pode ser, Legislador do Congresso Nacional.
          Quando se analisa a “discussão jurídica” objeto das ações em julgamento, vê-se de modo claro e objetivo, sem subterfúgios ou dúvidas, que (como disse o eminente ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles), segundo o Povo decidiu na Constituição Federal de 1988, na sistemática do art. 226: (a) a família é a base da sociedade (caput); (b) o casamento do homem com a mulher e da mulher com o homem é a expressão própria e celebrativa da família (§§1º e 2º); (c) a união estável do homem com a mulher e da mulher com o homem é família, assim como de pai e filho(a) e mãe e filho(a) (§§3º e 4º); (d) mulher e homem, homem e mulher, no vínculo familiar, estão em total plano de igualdade (§5º); (e) e a mulher e o homem, o homem e a mulher são plenamente livres na decisão sobre filiação inerente ao estado conjugal (§7º). A simplicidade, a clareza, do texto constitucional é sintomática, pedagógica e insofismável neste caso. Tanto é assim que ao se analisarem as falas e os votos dos Ministros, observa-se que nunca se viu um julgamento onde se falou e se devaneou sobre tudo – poesia, filosofia, antropologia, sociologia, “invencionologia” (e etc.) –, menos sobre Direito. Os devaneios foram tantos que só se ouvia frases do tipo “qualquer meio de amor vale a pena” (Barroso), “esse é um momento de ousadia judicial, de ousar fazer a travessia” (Fux), “O órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses” (Carlos Britto), como se os Ministros estivessem num Banquete Platônico ou a galantear nas reuniões noturnas e secretas das Bacchanalia da Roma Antiga. Tudo se falou, menos sobre Direito, porque o Direito ali para se colocar em discussão era indiscutível. Parafraseando o Ministro Ayres Britto: o que valeu ali foi o argumento de autoridade e não a autoridade do argumento (é só observar a brilhante exposição argumentativa do advogado da CNBB, argumentação essa em nada refutada – simplesmente não enfrentada – pelos Ministros).
          A esta altura, o leitor pode estar se indagando: “mas, então, como eles conseguem agir e fazer assim?”. Explico. A técnica que eles usaram (e usam) para ler um texto, como o do art. 226 da CF e o art. 1723 do CC, e extrair dele um significado que não está escrito, é a chamada Técnica da Interpretação Conforme a Constituição, nascida na Suprema Corte Americana (“principle: in the harmony with Constitution”) e difundida em todo o mundo pela Suprema Corte Alemã (“Verfassungskonforme Auslegung”). Tal técnica, resumidamente, consiste em se determinar, via hermenêutica, que interpretações se podem, ou não, fazer de um determinado texto. No caso do julgamento, estabeleceu-se que não se pode extrair da dicção do art. 1723 do CC – que diz “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher (…)” – a interpretação de que a união estável entre homossexuais não se constitui em entidade familiar. Ora, isso é uma “interpretação conforme” absurda, autoritária e psicótica (uma verdadeira “forçação de barra”), porque o texto não diz isso (diz o contrário!) e, fazendo o clássico raciocínio hermenêutico tridimensional (baseado nos elementos da ratio, ocasio e mens legis), não foi isso que o Povo, em Assembléia Nacional Constituinte, em 1988, quis dizer. Este é um típico exemplo do chamado Silêncio Eloqüente (“beregtes schweigen”) do Legislador Constituinte Originário que, sobre a união gay, nada admitiu ou disse. Neste sentido, o grande constitucionalista português Canotilho diz: “não se aceita a interpretação conforme a Constituição quando, pelo processo de hermenêutica, se obtiver uma regra nova e distinta daquela objetivada pelo legislador, seja em seu sentido literal ou objetivo”. O STF fez exatamente o contrário.
          Para se entender essas des(re)construções hermenêuticas de um texto – como o STF fez e faz, com o uso da técnica da interpretação conforme – é preciso voltarmos um pouco mais atrás e entender que isso também é obra do denominado Déconstructivisme de Jacques Derrida e Michel Foucault, teoria essa bebida na fonte da lingüística relativista de Ferdinand Saussure e da dessubstancialização da Verdade estabelecida e promovida por autores anti-cultura judaico-cristã, como Heidegger, Nietzsche e alguns outros da chamada Linguist Turn. De modo sintético e simples para a compreensão do leitor, todos esses autores estabeleceram no meio acadêmico-cultural que “não existem verdades absolutas”. Assim, ao se ler um texto como a Bíblia, ou um Código de Leis, cada um pode interpretá-lo da maneira que lhe convém, pois todos, num Estado Democrático de Direito, têm liberdade de fazê-lo. Trazendo isso para o mundo jurídico, autores como Jünger Habermas e Peter Häberle – e os que criaram a técnica da interpretação conforme – exatamente estabeleceram que os operadores do Direito – como os juízes de uma suprema corte – podem, até mesmo, extrair de um texto jurídico um sentido que não está escrito e dito nele. Se não há absolutos, se não há verdades substantivas, tudo pode ser relativizado através de reconstruções e desconstruções de sentido – mesmo no Direito. É nessas bases que o STF fez e faz. Por isso estamos de mal a pior e inseguros juridicamente. Observe que as argumentações usadas por muitos ministros, como o caso do Prof. Carlos Britto, podem também ser usadas para a legitimação de um hipotético casamento pedófilo, isto é, entre um adulto e uma criança. Isso é terrível e preocupante!
          No caso da união gay, como não havia previsão constitucional para a institucionalização da mesma, o máximo que o STF poderia ter feito era usar a técnica alemã denominada de “apelo ao legislador(o “Appellentscheidungen”). Esta técnica consiste em o Tribunal exortar ao legítimo representante do Povo – o Poder Legislativo – que, tendo em vista as transformações fácticas da atual realidade histórica, este deve proceder a uma determinada alteração (infra)constitucional. O Tribunal, corretamente, abstém-se, assim, de proferir a declaração de (in)constitucionalidade (ou de descumprimento de preceito fundamental), apenas apelando ao Poder competente e legítimo a procedê-lo. Isso é altamente democrático. Penso que assim deveria ter feito o STF. Como bem lembrou o eminente jurista Lenio Streck, em nenhum país do mundo, aprovou-se a união gay via judiciário, porque isso não é matéria de jurisdição e sim de legislação.
          Sábios foram os “Le sages” do “Conseil constitutionnel de France” que, em julgamento idêntico, em janeiro deste ano, numa situação jurídica exatamente semelhante a nossa no que diz respeito à união homossexual, simplesmente se limitou a dizer: “selon la loi française, le mariage est l’union d’un homme et d’une femme”. E sentenciou: “Não cabe ao Conselho Constitucional substituir seu parecer pelo do legislador” (Décision n° 2010-92 QPC du 28 janvier 2011). Confesso que, como ex-aluno do Profº Carlos Britto, decepcionei-me, por completo, depois deste voto em que ele – convidando os seus colegas ministros a fazê-lo – se arvorou e usurpou o Poder que sobre ele dispõe: o poder do Povo. Daí, de celebrado guardião, o Ministro Ayres Britto se tornou um temido Vilão da Constituição.
Uziel Santana dos Santos
[Jurista e Professor da Universidade Federal de Sergipe.

Artigo publicado no Jornal Correio de Sergipe em 08 de maio de 2011.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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