(Conto)
    
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César tinha voltado ao convívio do pó, à torreira do Sol e ao zurzir dos inúmeros barulhos de uma empreitada perdida no Golfo Pérsico e também ao tempo em que era bom responder a uma carta na inefável lassidão da eutímia e enviá-la pelo correio com um selo colorido. Enviar notícias por fax era devassar a vida. Os colegas respondiam que ganhavam em tempo o que perdiam em intimidade, como se a devassa fizesse parte do dia-a-dia. A correspondência com Matilde virara, aos poucos e poucos, de entretenimento em necessidade e, à medida que os escritos se sucediam de cá e de lá, foram-se tornando, por um lado, menos recheados de exornação literária e, por outro, mais plumitivos e íntimos, a coberto de sobrescritos by air mail. O corre-corre era um vício moderno que quebrava a paz, inclusivamente nos momentos em que o tempo usa sair do quarto para dar lugar à plenitude do acto do amor. No mundo dito civilizado, a espécie humana tinha adquirido a inexorável incapacidade de agarrar a felicidade, tal era a velocidade com que passava por ela. Mas as últimas notícias não eram agradáveis. Donald anunciara que Kate estava pior, que sofria para morrer e chamava por ele, quando passava pelo sono ou entrava em estados de semi-consciência. A morte sujeita a sofrimento era uma das razões que empurraram César para a fronteira fungível que o separava da crença. Só na fé cristã, é que o homem tem de sofrer para apaziguar a alma antes de morrer. Tinha de voltar à Escócia.
Aberdeen não havia mudado, não obstante o petróleo encontrado no Mar do Norte poder levar a pensar o contrário. Tal como há três anos, a cidade continuava pardacenta e húmida na face e na alma e decorria o mês de Agosto. Durante o Inverno, Aberdeen trocava algumas vezes o cinzento pelo branco e nos quinze dias de Verão que o Sol lhe concedia, em meados de Junho, vestia-se de azul e verde, com pontuações cintilantes a faiscarem das frontarias dos prédios de granito. Mas o ar descolorido da cidade contrastava com a simpatia dos aberdôneas, que continuavam a sofrer com as partidas que a meteorologia pregava. Mas César não dispunha de tempo para se dar às delícias de um diálogo cheio de ditos sublimes e risadas francas. Apanhou na Union Street o autocarro para Craigiebuckler e foi recordando parte do trajecto, olhando a entrada do Outono, recheado de folhas amarelas, acastanhadas e avermelhadas que se desprendiam do ciclo da vida para atapetar o solo sob a delicadeza da mão da gravidade. Um alvoroço mexia dentro de si e a constante passagem do autocarro por pequenos cemitérios, onde as pessoas passeavam como se fossem jardins, acentuava-lhe o desconforto. Era uma lúgubre vestimenta da sensação de prazer e o pior é que acabou por dar consigo fazendo parte daqueles grupos de gentes de que nem sequer conhecia a sombra.
Uma velha sentou-se a seu lado e, com um ar doce e tranquilo, parecia apostada em seguir a intencionalidade dos pensamentos de César, como se quisesse incutir-lhe resignação. Devia ser um dom da Natureza extrapolado de uma vida longa através de ruelas estreitas e sombrias. No decurso na nossa efémera existência, atravessamos serranias e vales profundos, oceanos e desertos, exigimos à vida que nos dê vida, prazer e prosperidade e pensamos muito pouco no sofrimento alheio até perto do fim da viagem. É o momento em que o medo tolhe as pernas, abafa a voz, humedece os olhos e ouve o riso longínquo do júri à procura do veredicto.
Para deixar de pensar em Kate, César tentou desviar o pensamento e lembrar-se que nada disto era novo e que estava a comportar-se de modo infantil. A velha, que estava sentada a seu lado, levantou-se, tocou a campainha para sair na próxima paragem e voltou a sentar-se. Olhou de novo para o seu companheiro de viagem, pegou-lhe no braço e esticou-se, para lhe depositar um segredo a resguardo da curiosidade. Por momentos, César convenceu-se que ela queria zombar dele, mas naquela imagem não havia sombra de ironia nem entoação de sarcasmo. Brotava-lhe do íntimo, o facies de quem convivia com o bem-estar dos outros:
 – My dear young lad! Estava a ver que as minhas preces não     resultavam – segredou, piscando o olho para rematar sem mais delongas – a minha paragem aproxima-se tão depressa que comecei a desesperar, mas saio satisfeita. Você assimilou finalmente a razão de ser da vida, não assimilou? Então acalme-se pois tudo está como é natural que esteja. That’s true! I’m not pulling your leg!
Many thanks! – Retorquiu César, ajudando a senhora a levantar-se que, vagarosamente, se dirigiu para a porta e saiu, sem deixar sequer o nome como recordação.
Mas era seguramente alguém que vivia uma existência plena de fé e de minúcias sequenciadas que obedeciam a um estilo feito de placidez e esperança, alheio ao próprio sofrimento, sabendo que tinha marcado, antecipadamente, um destino edénico, pensou Emanuel. E nestas conjecturas, até demorou a tomar consciência de que chegara a Craigiebuckler. Quando parou em frente da casa de Donald, olhou o jardim recolhido em seu sofrimento, bateu à porta mas ninguém respondeu. Decidiu tocar à campainha de uma vizinha e quando se preparava para regressar, a porta abriu-se sob o amplexo do infortúnio. Kate tinha morrido três dias antes, foi a enterrar na sua terra natal e Donald não voltara. César agradeceu a informação, olhou a casa, o deslizar da rua até à curva da vida, olhou a negrura do céu e voltou para trás depois de interiorizar que Kate sabia que ele tinha correspondido ao seu chamamento. A vida raramente é aquilo que desejamos que seja, mesmo que não nos reste outra alternativa que não seja o reconhecimento etéreo da verdade suprema.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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