Se o que vem do céu é bento, – frase que a meninada do meu tempo reproduzia nas brincadeiras de jogar algum objeto para cima, ocasião em que todos corriam para evitar o seu impacto na viagem de volta – a chuva, mais do que benta, é uma dádiva da natureza. Mas a chuva, quando em grandes doses, inunda as ruas, transformando algumas em improvisados e inoportunos riachos, atraindo as câmeras de televisão e as máquinas fotográficas dos jornais, na certeza de se revestir das cores da notícia.
          E aí vem a indagação: é a engenharia humana incapaz de lidar com a chuva no centro urbano ou é a administração pública que não se prepara para a chuva? Oportunas perguntas, sobretudo quando a chuva é periódica e reiterativa, anunciada e esperada, ocorrendo, ano a ano, nas mesmas épocas, de maneira que sobra tempo para que a administração pública se prepare para tanto. Evidentemente que não me refiro à ação das chuvas em cidades banhadas por rio ou por rio cortadas. Mas, as ruas distanciadas dos rios, das ruas que não tocam nos rios, nem fazem idéia do que é um rio, e, de repente, porque chove muito, ganham as vestes de riacho e se comportam, durante algum e incomodo tempo, como se riacho fossem.
          Como explicar a repetição das mesmas cenas, entra ano, sai ano, se constituindo em problema que se forra da velhice que não se rende a morte nem se retira do palco, a mostrar, em suas águas turvas, que alguma coisa, para coibir a transformação das ruas em riachos, nunca foi feita, nem será, à míngua de qualquer referência por parte da administração pública? Como conceber que a chuva inunde tudo e não se encontre uma solução prática e eficaz, como se fosse um problema besta, a ponto de não desafiar uma conduta positiva da administração pública?
          Mas é justamente o que, religiosamente, ocorre, de maneira que a foto de ontem, não fosse alguma alteração na paisagem da rua, poderia ser colocada no jornal de hoje, e ninguém perceberia a diferença, pela reiteração das lagoas em determinados e exatos locais, pelo nascimento do riacho a correr no asfalto ou paralelepípedo das ruas, a alimentar os noticiários e a incomodar os moradores da cidade, na mesma e dolorosa proporção, como se fosse um castigo dos céus que temos, todos, compulsoriamente, de expiar por alguma culpa praticada em algum lugar do tempo que nem encontra solução, nem deixa de, naqueles momentos certos, de ocorrer.
          Às vezes, fico pensando se a omissão da administração pública para com a chuva não seria um sinal evidente de respeito do homem [público] pelo que cai do céu, na sua condição de fenômeno da natureza, encarada como algo enviado por Deus, e, assim, portanto, autorizada a água a correr por onde desejar, sem que o homem pudesse levantar uma só pá para suavizar seu peso, por se cuidar de coisa sagrada, simbolizando, no fundo, o antigo medo do homem primitivo pelo trovão e pelo raio?
          Não sei. O que não se pode esconder é que a chuva, até agora, tem desmoralizado a administração pública, se elevando a condição de contraponto às corriqueiras propagandas divulgadas na mídia, nas quais a administração pública pousa de eficiente, representando os pés de galinha no rosto da senhora que não quer envelhecer, ou o bafo que a boca bonita expele quando se abre para falar. Chuva danada de repetitiva a mostrar, no fundo, que o homem público ainda não sabe como enfrentá-la, independentemente de toda gabolice que a maioria da propaganda oficial cultiva.
Publicado no Correio de Sergipe

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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