Betto Santos 10 de abril de 2011

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O ato de encarar-se no espelho sempre exerceu sobre ele enorme fascínio. O que para a maioria era simplesmente ver-se refletido, para ele, era um exercício que necessitava de bastante conhecimento da própria condição. O que enxergava no espelho era um objeto que necessitava de seu manuseio contínuo e hábil para que, no fim das contas, não restasse dúvida entre ele e o seu “eu” refletido.
O sujeito à sua frente reproduz minimamente cada movimento que ele executa. Tem a mesma altura. O mesmo peso. O rosto é idêntico ao seu, mesmos sinais, cor de olhos. Tem a mesma idade. Mas ele sabe que não se trata dele, mas sim de uma cópia, uma imagem diversa da sua, que deve seu humor ao seu estado de espírito.
Desde pequeno relacionava-se assim com espelhos. Para uns, objeto de vaidade vã – haja vista que tudo o que mais admiramos se corrompe -, para ele, a consciência de outro mundo, onde criaturas que são, de fato, diferentes de nós, vêem-se obrigadas a imitar-nos. Loucura? Não, não atribuia a si mesmo o benefício da loucura. Diria-se sádico. E quem não o é diante do poder, perguntava-se.
Move as mãos rápido. Ele – o outro – imita. Fala, diante do espelho, RI-DÍ-CU-LO. Assim mesmo, alongando bem as sílabas. O estranho no espelho limita-se a imitar. Encara-o, sério. O outro encara de volta, mas não com mesma seriedade dele, pois o que pode fazer senão imitar passivamente o seu ato?
Sorri e é um sorriso largo, um sorriso de deboche, digno dos loucos que tudo perderam. Gargalha como quem está embriagado, diante de seu escravo. O outro apenas o imita em sua cumplicidade involuntária. Pisca os olhos um número incontável de vezes. O outro não perde sequer uma piscadela. Deforma as linhas de seu rosto com as mais bisonhas caretas, assemelhando-se a um macaco ao fazê-lo.
Diriam que é louco, ridículo. Só que o que acontece é que sente-se o dono da ação, pode pará-la a hora que bem entender, ao passo que o outro, o estranho no espelho, tem que cumprir suas ordens sem pestanejar. Grita. Gesticula. Descabela-se. Pula. O outro gesticula. Descabela-se. Pula.
Cansado, apóia-se na moldura do espelho. Mesmo exausto, consegue sorrir do que acaba de fazer. Volta a encarar o espelho. Sorri para o outro. De repente se dá conta de algo estranho no reflexo ou pelo menos acha. É algo que não havia notado. Sente um mal estar no corpo todo ao achar que ele – o reflexo, o outro – parece estar mais sério. Sorri outra vez, menos verdadeiro, mas sorri. Sim, não há dúvidas. Embora o outro também sorria, o canto de seu lábio (e para ele é inegável) denota uma incômoda seriedade. Sim, é como se o reprovasse. O olhar é mais e mais duro. Recua assustado, atônito, enquanto aquele rosto, que é seu rosto, mas não é seu rosto, torna-se mais e mais severo, reprovador.
Afasta-se, tentando se esconder daquele olhar, daquele rosto austero, daquele rosto que é o seu rosto, mas não é o seu rosto. Sente o coração doer (quer gritar, só não consegue). Cai no chão, bate a cabeça, sangra. Sente que está perdendo a consciência (ou a vida). Revira os olhos em desespero. Tudo vai virando silêncio. Ainda consegue olhar para o espelho. Enfim o estranho sorri.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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