Marcelo Barros 19 de abril de 2011
Desde Nietzsche, muitos pensadores e até teólogos afirmaram que Deus morreu. Não falavam de Deus em si, mas da sua presença e influência em uma sociedade que, até pouco mais de um século, tudo fazia em nome de Deus. Em pouco tempo isso mudou. As sociedades se tornaram autônomas e leigas. Deus pareceu não ser mais necessário. Apesar de que, por motivos mais humanos do que divinos, alguns eclesiásticos, de diferentes Igrejas, ainda sonham com os velhos tempos, a parte mais lúcida dos crentes descobriu que, libertadas das implicações do poder político, as Igrejas puderam dedicar-se mais profundamente à sua missão específica. A própria visão sobre Deus se transformou. Mesmo a Bíblia, o Corão e outros livros sagrados têm sido reinterpretados para não legitimar a imagem de um Deus patriarcal, autoritário e até cruel. Um amigo atravessava Roma de táxi quando ouviu do taxista uma confidência: “Se eu fosse Deus, morria de vergonha!”. Cada vez mais, descobrimos no próprio evangelho, a revelação de um Deus que não se impõe e só sabe oferecer amor e ternura. Este Deus não pretende nem dominar o mundo, nem dividir a humanidade em crentes e não crentes. Já há mais de 60 anos, foi Dietrich Bonhoeffer, crente e não ateu, pastor evangélico e não filósofo agnóstico, que, ao retomar a proposta de um pensador do século XVI, concluiu: “Devemos viver com Deus, como se Deus não existisse!”.
Nesta Semana Santa, ao recordar a morte de Jesus na cruz e, no Sábado Santo, a sepultura do Senhor, de certa forma, os cristãos voltam à questão do silêncio e da aparente ausência de Deus. A experiência de Jesus na Cruz e a fé de que ele ressuscitou pede também às Igrejas fazerem o caminho da inserção em uma sociedade pluralista, na valorização de uma fé adulta e autônoma e unida a todas as pessoas de boa vontade em um caminho de responsabilidade civil. Nada mais de um Deus tapa-buraco que serve apenas para resolver problemas imediatos. Se Deus não pôde evitar a morte do seu filho querido, não é uma divindade todo poderosa que interfere diretamente e a todo momento na história. Um Deus que dá moradia, saúde e felicidade só às pessoas que o adoram e deixa os outros à mingua não é o Deus revelado por Jesus no Evangelho. Este nos quer filhos adultos e livres, capazes de viver e organizar a vida socialmente e não na dependência permanente de algum milagre ou intervenção divina. O evangelho diz que Jesus era tão pobre que não tinha nem onde reclinar a cabeça. E quando lhe ofereceram que transformasse pedra em pão ou se atirasse de uma montanha para ser amparado por força divina, ele reconheceu nestas propostas a tentação do diabo. Hoje, alguns grupos cristãos inverteram a história. Dizem que as pessoas estão pobres e sem nada porque estão dominados por Satanás. Se vierem à Igreja e colaborarem economicamente, se tornarão prósperas e “Deus” as abençoará. É justamente o contrário do que Paulo escreve aos cristãos de Corinto: “Vejam, irmãos, o grupo de vocês. Nele, não há pessoas intelectuais, nobres, pessoas de posse e de poder. Mas, Deus escolheu os empobrecidos do mundo para confundir os poderosos” (1 Cor 1, 26 ss).
O salmo afirma: “O céu é de Deus, mas ele entregou a terra aos humanos” (Sl 115). A Igreja pode e deve ajudar às pessoas carentes a se organizarem nas lutas civis e pacíficas pelos direitos humanos que são de todos e não só dos crentes e devotos de tal Igreja. O evangelho chama a cada um para cuidar da saúde e dos direitos coletivos e não de deixar o mundo como está e conseguir com Deus privilégios particulares para os que aceitam pagar pedágio aos pastores. Nada é mais oposto à fé verdadeiramente cristã do que o individualismo egoísta.
Neste ano, pela segunda vez consecutiva, as Igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente terão uma oportunidade rara e belíssima: celebrar no mesmo dia a festa mais importante da fé, a santa Páscoa. Neste próximo domingo, evangélicos, católicos e ortodoxos estarão proclamando juntos que Jesus Cristo venceu a maldade do mundo e a morte. Esta celebração pascal deve ser não só uma sucessão de belos ritos antigos, mas o compromisso dos homens e mulheres de fé com a transformação deste mundo que começa na esperança e no amor de cada ser humano consagrado à vida. A figura do Cristo ressuscitado é primícia e antecipação deste novo mundo possível, ao qual todas as pessoas que amam a vida são chamadas a aderir e promover.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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