CÓPIA FIEL
– Que filme chato!
Foi essa minha sensação e minha exclamação ao acabar de assistir o filme “Cópia Fiel”. Eu resistira heroicamente ao tempo da projeção, cada vez mais irritada e cansada, enquanto o filme corria . E ouvira os muchochos e suspiros angustiados e entediados de muitas outras pessoas na platéia, o que confirmava o quanto era desagradável aquela história.
Depois, pra não perder de vez a noite, um intervalo para um papo e o acerto do ritmo, antes de voltar pra casa. Então, saindo dos comentários inevitáveis e impulsionados ainda pelo incorformismo do tanto de tempo desgastante passado no cinema, surge um novo filme.
É verdade. “Cópia Fiel” desgasta. Tanto como a própria neurose o faz. E parece que é a esse lugar que o cineasta quer nos reconduzir: ao encontro do sistema neurótico das relações amorosas. Pois a tentativa de reviver as situações idealizadas, para reeditá-las, um recurso banal de nosso psiquismo, quando mergulhado na mediocridade das artimanhas neuróticas, faz com que passemos a confundir falso de verdadeiro, original e cópia.
O filme é rico em situações simbólicas, que, se nos escapam enquanto o assistimos, buscando um envolvimento fácil, ressurgem no final e nos remetem a muitos significados possíveis. Voltando às primeiras cenas: as cadeiras vazias, com a tabuleta de reservadas e que se mantém vazias, com a exceção de uma, ocupada rápida e inadequadamente pela fã (a protagonista feminina da história), podem significar, por exemplo, as oportunidades que teríamos de viver coisas novas e interessantes, se mantivéssemos, de fato, em aberto, espaços que podem ser preenchidos com possibilidades outras, diversas do que podemos capturar e pretender preencher com planejamentos certos, apressando assim o script da vida com o que parece mais óbvio, mais fácil, mais adequado.
Os três casais que surgem durante a trama (um jovem casal de noivos, um casal maduro que passeia pela praça e um casal muito idoso que sai de uma igreja) trouxeram-me a idéia do tempo que atravessa as relações, nem sempre acrescentando sabedoria e muitas vezes apenas reforçando atitudes padronizadas pelos costumes, que podem dar a ilusão de felicidade e ser, no entanto, apenas conformismo, apenas rituais desprovidos de essência (a denuncia que ele faz do falso ritual de provar o vinho seria o simbolismo disso).
O menino, única criatura que assume seus desejos na história, contrariando deliberadamente as regras maternas, é, significativamente o único que come (se alimenta), durante a trama. (Os adultos declaram ter fome, mas mal conseguem mordiscar um pão seco, provavelmente aquele mesmo que, como se diz por aí, o diabo amassou com o rabo… Mas o jovem tem também uma visão monocular, provocada por um tapa-olhos criado pela franja, que o restringe a uma visão periférica, sem as ampliações de ângulos diversos, criadas pela perspectiva , que requer visão binocular. É ele, no entanto, autorizado pela proximidade com o tempo do surpreender-se, próprio da infância, que denuncia as incoerências do comportamento materno. E ele não aceita o lugar de simples cópia de um modelo , que a mãe lhe quer impor.
Os recursos da filmagem, levando-nos aceleradamente por curvas fechadas enquanto o casal passeia de automóvel, sem nos deixar sequer apreciar a paisagem (da Toscana!) e a partir de um momento, escurecendo propositadamente as cenas, negando qualquer possibilidade de visão interior, também remetem ao movimento pulsional do complexo neurótico, que turva a visão dos fatos, que tonteia, que nos faz girar em círculos, que nos afasta da lucidez possível, e, quem sabe, redentora, adquirida principalmente num movimento de olhar para dentro.
A dificuldade de envolvimento do escritor ( o protagonista masculino da história), que está sempre ligado mais ao que está fora: a ligação que ele recebe do celular, a que atende, durante a apresentação de seu trabalho, desrespeitando, a um só tempo, tanto o público, que fica assistindo impassível, aguardando que o telefonema acabe, e o interlocutor , porque ele apenas transfere para outro momento o contato.
Vê-se claramente duas metades no filme: a de um tempo em que a mulher está totalmente envolvida com a figura idealizada do escritor, projetando nele ilusões e sonhos e, em seguida, um tempo em que ele é capturado por essa idealização e, ao tentar participar dela, assumindo as atitudes do papel que lhe é imposto, passa, de repente, de autor a personagem. A mulher consegue, então, realizar seu intento: torná-lo apenas um cúmplice seu, na trama de que ela passa, agora, a ser a autora.
Essa virada, de uma parte da história para a outra se dá exatamente no momento em que ele atende a uma segunda ligação telefônica, deixando sozinha, na mesa de um café, sua acompanhante (condutora?). Nesse momento, uma terceira pessoa, a dona do café, imaginando que aqueles clientes formam um casal, inicia com a mulher um diálogo sobre casamentos e maridos ideais, o que passa a ser estímulo para os desvarios da “mocinha”.
Entre ser a mulher que realmente é naquele momento, sozinha, repleta de aprendizados que podem apenas servir de adubo para relações futuras e voltar a ser a mulher do amor romântico do passado, que projeta no outro sua própria capacidade de encontrar satisfação, repetindo situações antigas e tentando desesperadamente corresponder ao que imagina que o outro espera dela, a protagonista, a exemplo do que faz com os brincos, opta pelo modelo do casal, do par. Nada de um só brinco, desafiador (vermelho) e ímpar. Melhor escolher o par correto, que combina com a cena e tentar fazer a mulher sedutora e boa, dentro de uma medida exata.
Mas, como medida certa não existe, nem na fantasia nem na realidade, porque a balança não tem um fiel tão eficiente quanto a cópia pode aparentar ser, a neurose sempre perde a mão e peca pelo excesso, na busca de preenchimento da falta.
O filme denuncia muito bem o desgaste corrosivo dos lugares comuns. Quer seja no periférico da intimidade aparente (o debruçar a cabeça no ombro como entrega, que implica confiança, ou o pôr a mão no ombro como proteção, que implica cuidado), quer seja nas muitas e múltiplas insatisfações e reclamações sobre o que o outro não deu, não fez, não disse, não mostrou, até na afirmação da inevitabilidade da aceitação das mudanças e na importância do zelo, como cauterizador/transformador diário das feridas, o dia-a-dia das relações é revisto de forma tão repetitiva, quanto o é, de fato, na vida: desgastante e inútil, aparentemente.
Eleger o outro como parâmetro do que somos e vivemos, embora inevitável, pode ser destruidor, se saímos da posição de observadores e nos agregamos amalgamadamente a sua forma de ser, perdendo-nos nesse espelhamento, no infinito de um abismo intransponível.
Ao final, só resta o expelir. Fico me perguntando se no Irã existe também o dito “sai na urina” porque é assim que o autor parece encerrar a trama.
“Cópia fiel” me fez lembrar “O homem que não estava lá” dos Irmãos Coen e “Cenas de um casamento” de Bergman. Foi menos torturante assistir o Bergman, que, por sua magistral sutileza, nos envolve, sem causar irritação, apenas compaixão. Em Cópia Fiel, dificilmente você consegue se colocar no lugar dos protagonistas. Você fica desconfortavelmente como simples expectador e, assim, totalmente despotencializado. É duro!
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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