Há tempos prometi que escreveria sobre isso a que chamam “bullying”. No Facebook já andei registrando minha opinião: síndrome de falta de adultos. Este (a falta de adultos) é um tema antigo em minhas reflexões e que já quase me custou boas amizades antigas, que se sentiram diretamente atacadas por minhas opiniões. Lembro que quando os pais exultavam com as crianças de caras pintadas, reclamando nas ruas sobre os preços de mensalidades escolares, eu declarava: esse era (e continua sendo) um dos assuntos para ser tratado pelos adultos e estes se protegiam por trás da reinvidicações de seus filhos, evitando tratar diretamente da questão crucial: o custo da Educação, analisando-o em relação a todas as despesas do cotidiano, e à responsabilidade por ele.
Adultizar a criança (erotizando-a e intelectualizando-a precocemente), infantilizar o jovem (mantendo-o economicamente dependente da família até tão tarde e justificando e relevando, comumente, sua má conduta, quando acontece) é paralisar o adulto, denunciava eu, em crônica da mesma época, a década de 80.
Estive mergulhada muitos anos no acompanhamento de bebês, crianças, jovens e adultos, vivendo imersa na relação família/escola, dedicada ao fazer educativo, para que pudesse me esquivar de pensar seriamente essas (e outras) questões da formação e desenvolvimento psicológico do ser humano. Seguidos a esses, outros tantos anos de clínica, me trazem a confirmação de minha, então apenas esboçada, convicção: é de falta de adultos que padecemos.
Acordei, no dia 7 de abril, pensando num filme a que assisti muito tempo atrás: “O Dia do Gafanhoto” (The day of the locust – 1975). Premonição? Desconheço que tenha tal capacidade, mas me estranhou que, na paz em que vivo no meu sítio Retiro, me voltassem à memória as cenas finais de uma história tão antiga, que trata do emaranhado de relações, aparentemente independentes umas das outras e, se não inócuas, irrelevantes, que vão se aglomerando energeticamente de tal forma, que terminam numa cena apoteótica de “crucificação”, de expurgo, de expiação daquilo que condensa e personifica o Mal. Nesse filme magistral, John Schlesinger, faz um demonstração imagística do que Freud teorizou em “Psicologia das Massas e Análise do Ego” e trazendo ainda o símbolo do arrancar pouco a pouco as patinhas do gafanhoto (poderia ser da formiga, se fosse na nossa cultura), ato que as crianças praticam, experimentando lidar com seu poder sobre o mais fraco e com o desejo perverso de vivenciar a dor do outro, num ritual sado-masoquista, sem maiores consequências, aparentemente.
Hoje, no IML do Rio de Janeiro, um cadáver aguarda por identificação, para poder ser enterrado. É o corpo de um jovem homem que, nesse momento, encarna o Mal, que precisamos de tal forma afastar de nós, que passa, por não identificado, a não ter nome, nem fazer parte de nenhum grupo. O corpo de um ser humano que um dia veio à Luz, através (dizem) de uma mulher “louca”; que foi “adotado” por uma mãe de família, possivelmente sua parenta e introduzido numa “irmandade” que faz parte da sociedade comum, considerada saudável e normal. Nesse momento ele tem apenas um qualificativo: monstro – que garante dele, à toda espécie existente na Terra, um distanciamento conveniente .
Na Escola Municipal Tasso da Silveira, enquanto, na quinta-feira passada, sozinha no Retiro, eu captava as imagens de “O Dia do Gafanhoto” em minha memória, um ex-aluno, de nome Wellington, chegava. Entrou, sem encontrar nenhuma necessidade de justificar sua presença ali e se dirigiu a uma professora. Ela não tinha tempo para atendê-lo, nem para encaminhá-lo a quem pudesse fazê-lo. E o ex-estudante, ex-filho, ex-irmão, ex-empregado, que, na véspera, provavelmente num surto psicótico violento, quebrara toda sua casa e queimara o único veículo de acesso que mantinha com o mundo – seu computador – encarnou, de vez, o desespero da Loucura.
No dia seguinte, ouvi, pelo rádio, um teólogo da PUC de São Paulo, comentando esse acontecimento, dizer que, nesses casos, o assassino/suicida está matando Deus. Entendo que ele queria dizer que o desgraçado está matando definitiva e inexoravelmente, o divino, a esperança.
O menino Wellington cresceu junto com 5 irmãos, três dos quais, a exemplo da comunidade de Sepetiba (onde ele morava, ultimamente) e de antigos colegas de escola, declaram que ele era tímido, calado, distante. Ninguém apareceu ainda que relatasse algum delito cometido por essa criatura em 23 anos de existência; um mal que tenha causado a alguém; uma atitude agressiva. No entanto, em todo esse tempo, alienado e visivelmente apartado de qualquer grupo, ele não parece ter despertado nessas pessoas a compaixão mínima para sequer, agora, ir reconhecê-lo e permitir que seja enterrado, como desejou, num provável último momento de vislumbre da realidade, talvez. Ao dar prosseguimento ao ritual de velório e enterro de Wellington seus parentes e conhecidos estariam acatando uma semelhança da qual não se pode fugir (“…rato, meu semelhante, meu irmão” – escreveu Chico Buarque na música “Ode aos Ratos”, que poderia ser o tema musical desse momento).
O teor da carta encontrada em sua casa não deixa dúvidas de que ele não seguia nenhuma religião específica. Estava imerso em uma confusão mística, buscando inutilmente alguma coisa em que se fundamentar. Mas é mais fácil para quem prefere simplificar os fatos, atribuir a esse ou àquele sistema ideológico/religioso a responsabilidade que é de todos nós, seus contemporâneos. O rapaz diz, no mesmo documento, que quer que a casa se transforme num abrigo para animais – que não podem conseguir, por si mesmos, lutar pela sobrevivência – ele afirma. Não é preciso ser psicólogo para saber como ele se sentia, aprisionado na doença mental galopante, abandonado, quase invisível para os que o cercavam, que apenas sabem relatar sobre seus hábitos que ele comprava, diariamente, o refrigerante e a quentinha, no mesmo lugar, não demonstrando nem sinal de apetite, nem de qualquer desejo.
Parte de minha comoção, está, pois, em Wellington. Nos muitos wellingtons que existem entre e dentro de nós, vítimas do descaso e da rejeição dos normais, dos bons, dos saudáveis, dos justos. Mas para ele, o sofrimento acabará, logo, logo, de toda forma. Como finda é a possibilidade, de aqueles jovens que ele matou, virem a ser felizes ou infelizes na vida. A morte interrompe, queiramos ou não, as histórias individuais. O que fica, então, para nós, da vivência dessa dor tão grande? Qual as reflexões necessárias e que lições tirar desse acontecimento tão brutal e impossível de ser entendido? Como fazer com que todas essas mortes, inclusive a de Wellington, não tenham sido vãs?
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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