www.padrebeto.com.br

Um grande circo havia se instalado perto de uma pequena cidade. Em uma certa noite antes do espetáculo, os artistas foram surpreendidos ao ver a lona pegando fogo. Desesperado, o proprietário do circo mandou o palhaço correr até a pequena cidade e pedir ajuda, pois o fogo poderia atingir as plantações de trigo que cercavam a cidade e colocá-la em perigo. O palhaço, que já estava vestido e maquiado para o espetáculo, correu direto para a praça principal da pequena cidade e começou a gritar alertando a população para irem ao circo, pois ele estava em chamas. A população ouvindo o palhaço começou a dar risada e se divertir pensando se tratar de um truque comercial do circo. O palhaço entrou em pânico e começou a chorar. Por sua vez, a população ficou entusiasmada com o realismo de sua “atuação” e começou a aplaudi-lo calorosamente. O fogo, então, se alastrou pelas plantações de trigo e, quando a população se deu conta do que realmente acontecia, era tarde demais, o fogo destruía rapidamente suas casas.

Muitos possuem desde crianças a atitude natural e espontânea de acreditar que o mundo existe e que é exatamente como o percebemos. Nós assimilamos a visão de mundo que nos convence de que a vida é simplesmente assim e em diversas situações somos levados a crer que seu curso está praticamente pre-fixado, sendo nossa vontade ou nossa inteligência praticamente impotente para dirigi-lo ou alterá-lo. À esta visão de mundo damos o nome de dogmatismo. Na atitude dogmática, tomamos nosso universo já dado, já feito, já pensado, já transformado. A realidade natural, social, política e cultural forma uma espécie de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos. Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário, nossa tendência espontânea e dogmática é reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Um palhaço é sempre um palhaço e nunca poderá ser levado a sério. O ator representa e o professor ensina, o aluno aprende. Nós assimilamos o “senso comum” de nossa sociedade e através dele reproduzimos padrões, crenças e verdades pré-estabelecidas. Porém, como escreveu Guimarães Rosa, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. O que faz com que os diferentes filósofos se diferenciem dos demais seres humanos é justamente o assumir a atitude contrária: a desconfiança não somente frente às opiniões e crenças estabelecidas pela sociedade, mas também frente às suas próprias idéias e opiniões. Em outras palavras, o verdadeiro pensador desconfia de toda espécie de dogmatismo ou fatalismo. Ao invés de aceitar simplesmente como as coisas lhe são apresentadas ou como ele próprio a percebe, o pensador se coloca no desafio de encontrar a solução para um dos problemas mais básicos, ou seja, o problema de que a ilusão é possível. O homem que pensa não é aquele que procura ser bem informado, mas sim aquele que procura encontrar a resposta para uma simples pergunta: as coisas são mesmo tais como me aparecem? “Uma vida não questionada não merece ser vivida” (Platão).

Uma visão de mundo dogmática se destrói quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos parecem familiares. Estranhamento significa o esforço de tentar perceber o mundo como algo totalmente novo. Ao descobrir o universo a sua volta, a criança possui admiração por fenômenos muito simples e banais para nós adultos. Desta forma, antes delas assimilarem nossos padrões, experimentam seu mundo com muita liberdade e interagem com ele sem pré-conceitos. Ver a realidade com estranhamento é procurar ver as coisas como totalmente novas e analisá-las sem o funil de nossos padrões e conceitos.

Além da atitude de estranhamento, para sermos verdadeiros pensadores é necessário ter a consciência de que a vida não “é” assim, mas “está” assim. Em sua ontologia, Tomás de Aquino faz a diferença entre realidade (actus) e possibilidade (potentia). Em nosso universo humano encontramos sempre a possibilidade de ser ou não ser, em outras palavras, a possibilidade da transformação. “Nossas aspirações são nossas possibilidades” (Robert Browning). Se observarmos uma rocha encontraremos nela a possibilidade de se tornar uma estátua, o que no momento ela não é. Se um artista transformá-la em uma estátua poderemos ainda ver a possibilidade dela transformar-se em pó, o que ela, no momento, não é. A Forma e a Matéria não são o ser propriamente dito, mas o que ele está sendo (quod est). “Utopia hoje, carne e osso amanhã” (Victor Hugo).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]