Betto Santos 19 de abril de 2011

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Charlie era azarado demais. Fazia gol e errava no “replay”, como dizem. Até seus dezesseis anos era tudo normal, então começou. Foi quando Charlie perdeu a namorada, o celular, os pais, o carro dos pais e só não perdeu a vida por falta de “oportunidade”, como dizem. No começo Charlie dizia não acreditar nisso de azar, então no mesmo dia, foi atropelado por uma ambulância. Foi de leve. E ele pensou que até não era azarado, pois ser atropelado por ambulância era mescla de sorte e azar. Então levantou a cabeça e viu que a ambulância tinha fugido. Socou o chão, quebrou a mão.
Decidiu que não iria ao hospital, foi pra casa cuidar da mão quebrada. Chegando lá, seu cachorro – um dos únicos próximos dele que sobraram vivos – mordeu sua perna. Charlie não entendeu, mas o cão, esperto como era, provavelmente estava tentando expulsar Charlie de lá, antes que atraísse alguma “coisa ruim”, como dizem. Entrou em casa fugindo do cachorro, tropeçou no tapete e derrubou a televisão, de uma forma espetacular – já que a televisão ficava mais ou menos a vinte metros do tapete – que apenas ele conseguiria. Charlie não quebrou todas as outras partes do corpo tentando cuidar de sua mão quebrada. Ele foi prático, pegou um pedaço de madeira, colocou na base do pulso e enfaixou. Ficou cheio de felpas na mão, mas disso ninguém sabe. Ficou uma semana em casa, não saia pra nada. Nunca souberam se era por causa do cachorro, ou por medo do que poderia acontecer. O cachorro não parava de rosnar pra porta. As pessoas passavam pelo outro lado da rua. Charlie Azar, Charlie Mata-em-volta, Charlie Pata quebrada. Ele virava, aos poucos, uma lenda urbana, ou uma piada (como dizem). Com apelidos e histórias que as crianças inventavam pra assustarem umas às outras de noite. “dizem que ele matou os pais para fazer um pacto com o diabo” dizia uma. “oooh” diziam todas. “e ao que parece não cumpriu o trato que fez com o coisa-ruim, e ele incorporou no corpo do cachorro dele pra vim cobrar”. Nesse momento o cachorro do Charlie uivou do outro lado da rua. Alguns saíram correndo de medo, o que contava a história se levantou (tremendo) fingindo que ria dos outros “ah, bobos”, mas caminhava devagar pra casa não por estar calmo; a calça que tinha pesado.
Charlie saiu de casa algum tempo depois, com a mão torta e inchada. Era 2007. Charlie era colorado, porém naquele dia foi à final da copa libertadores do time rival, o grêmio. Que como se sabe, perdeu. Saiu feliz de lá, finalmente tinha achado uma utilidade pra tanto azar. Resolveu aproveitar isso de algum jeito. Começou a ir a passeatas de políticos que ele não gostava, a multidão tropeçava junta, era incrível. Ao que parece então, Charlie nunca mais perdeu ônibus nenhum, ou quase isso, por que o ônibus nem saía do fim da linha, quebrava por lá mesmo. Charlie decidiu que não queria mais viver assim, atrapalhando os outros. Seqüestrou um avião particular, que incrivelmente decolou; entretanto, quando Charlie tentou o suicídio, jogando o avião de bico numa ilha do pacífico, o avião nem fumaça soltou, apenas desligou. Charlie hoje vive na ilha, as pessoas até localizaram ele por satélite, porém se recusam a resgatá-lo, com medo do que pode acontecer. Sempre que Charlie tenta se alimentar, pegando um coco, ele cai em sua cabeça. Tenta pegar um peixe, e até os inofensivos lambaris, que nem dente tem, mordem suas mãos com a gengiva. Charlie um dia se irritou muito, amaldiçoou tudo. Estava vermelho de raiva, gritava para os céus, então, caiu de costas e quebrou o nariz, como dizem.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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