Retalho do Romance “A Última Ponte”

                 
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Os temas sagrados foram objecto recorrente da pintura renascentista, cujas características básicas se centravam em redor da simetria dos conjuntos, das dobras e redobras dos panejamentos, no tom exibicionista de certas personagens, na elevada qualidade do vestuário usado, inclusive, por gente cuja habitação não passava de um tugúrio feito de pedra e adobe, etc. Os pintores flamengos seguiram, com frequência, estas tendências, mas o retábulo “A Paixão de Cristo”, supostamente atribuído a um célebre pintor flamengo do séc. XVI, que Arnaldo e Inês¹ foram analisar, não satisfazia o gosto do Renascimento.
A cruz encontrava-se descentrada do conjunto e as traves eram troncos de árvore selvagem com nós exsudando seiva. O Crucificado tinha compleição frágil, tez morena e fácies triangular, que apresentava uma expressão de compaixão magoada e estava tombada, sobre o peito, levemente inclinada para a direita. A cabeleira escura descia para os ombros cobertos por madeixas ensopadas de sangue e, ao redor da cabeça, havia uma coroa de espinhos cravados na carne, de onde jorravam fios de sofrimento feitos de enxovalho e, no topo da cruz destacava-se, numa tabuleta jocosa, a sigla “I.N.R.I.” que, supostamente, quereria dizer “Jesus de Nazaré; Rei dos Judeus”. O corpo estava dilacerado por chagas que se perpetuaram até aos nossos dias, cinzeladas pela expressão mais humana que alguma vez uma divindade proferiu: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste». As cordas que suportavam o corpo amarrado à cruz estavam manchadas pelo suplício de outros e as mãos abertas e pregadas no madeiro, exibiam os cravos como símbolo do hierático cilício suportado, cordas e cravos que não impediam a flexão das pernas, não obstante os pés estarem poisados e pregados, um sobre o outro, a uma peanha.
Num abraço largo à cruz, havia uma mulher morena e bonita, de cabelos negros e desgrenhados, que parecia querer esconder-se do horror por detrás de um corpo transido de amargura. Usava um véu verde e uma túnica acastanhada feitos de tecidos rústicos, cingida na cinta por um cordão que lhe realçava o busto. Não tinha cara de mãe, mas tinha a face salpicada pelo sangue do martírio e as mãos abertas e voltadas para cima, como quem deseja colher, numa árvore, o fruto que lhe pertence, impulso sentimental próprio de quem sabia o que é a angústia em toda a sua dimensão e esquecera que a dor que lhe ia na alma era reflexo de emoções e sentimentos que não indultam nem garantem a paz eterna, porque esta mulher devia ser Maria de Magdala mais conhecida por Madalena. A túnica caía de forma ondulada até roçar o chão, engolindo os pés que Jesus lavou e beijou num acto de humildade e amor.
Atrás de Maria Madalena, numa posição sesga, encontrava-se um homem que contrastava na forma luxuosa de vestir. Estava cabisbaixo e ajoelhado num só joelho, como quem deseja esconder o rosto em sinal de respeito e talvez de embaraço. O embaraço, a vergonha e a culpa são emoções sociais, e não deixa de ser possível admitir que um rico não se tivesse sentido bem entre os pobres e pudesse ser negativamente emocionado. Tinha roupa luzida, calças de folhos azuis e amarelos, camisa creme com colarinhos de sobra, casaca púrpura almofadada nos ombros e uma capa ocre e vermelha dobrada sobre o joelho flectido. A posição em que se encontrava não deixava ver mais do que uma barba cuidada que pendia para a terra ultrajada, solo que se formou por apodrecimento de um morro feito de pedra friável, barro, martírio e ossadas com cheiro a tortura. Também não se descortinava a cor do cabelo que, a atender à barba, seria castanho, pois estava escondido sob um turbante roxo, escolhido a condizer com o acto. Segundo testemunhos itinerantes, o Messias deu-se a amizades que envolveram pescadores, publicanos, prostitutas, essénios e outros, pelo que é de admitir que este homem seja José de Arimateia, que disponibilizou um túmulo para que o acto fúnebre não terminasse em vala comum.
E como encaixaria, no conjunto, a Virgem Maria? Seria de admitir que estivesse chegada à cruz, como Maria Madalena, quem sabe se ao lado de Marta, irmã de Lázaro, aquele a quem Jesus prolongou a vida. De facto, naquele lugar sórdido, estiveram muito mais mulheres do que homens. Quase todos os discípulos desertaram à excepção de João, mas as mulheres foram mais corajosas, sabe-se lá por que razão. Mas, na posição oposta a Madalena, mas mais afastadas da cruz, podia ver-se, lado a lado, duas outras mulheres em meditação. As suas túnicas e mantos tinham cores palidamente azuladas e debruo singelo. Exibiam a cabeça tapada e a face semi-oculta e compungida, personagens que se afiguravam ser Maria Cléofas e Maria Salomé, irmãs da Virgem Maria, que pareciam elevar as mãos à cara, como quem deseja tapar o horror que lhes feria a alma. Mas, se os observadores não tinham certezas sobre estas personagens, o mesmo não se podia dizer de quem estava entre o publicano e Maria de Magdala, numa posição oposta a Cleófas e Salomé.
É difícil conceber uma cena do Calvário com um homem bem mais novo do que Jesus, sem pensar em João, que viveu, passo a passo, os Passos da Paixão para os narrar por escrito, como nenhum dos outros evangelistas canónicos o fez. João foi representado por alguns pintores como uma figura loira, de cabelos lisos e compridos, imberbe e de feições angélicas, mas o jovem deste painel nada tinha de árico e muito menos de andrógino e não era credível que este retábulo pudesse estar imbuído da metáfora gnóstica, como fez Da Vinci em “A Última Ceia”, pintada no refeitório do Convento de Sta. Maria delle Grazie em Milão. A face desta personagem era riscada por traços de Jesus, o que permitia inferir que pudesse tratar-se de um parente próximo e porque não dizer, de um dos seus irmãos. Tem cabelo preto, crespo e curto e barba do mesmo timbre, aparada em forma de pêra, que lhe moldava o queixo e se ligava ao buço por arcos que contornavam os cantos da boca e dissimulavam a rigidez da face, contraída de sufoco e mágoa. Olhava para o destino com uma expressão de respeito e de admiração, sob um céu de nuvens violáceas e negras que ocultavam a luminosidade, como se o Sol decidisse retirar-se por força de respeito solene. João, Tiago ou outro, devia estar ainda pouco seguro da incumbência do Irmão de fé ou de sangue que, antes de morrer, disse para a Mãe: «Mulher…eis aí o teu filho» e para ele «filho, eis aí…a tua Mãe». Estava vestido com uma túnica avermelhada e baça, manchada de pó, que caía a direito, mostrando os pés metidos em sandálias de casca de palmeira, pelo que a sua figura não excedia nada daquilo que é inequivocamente terreno. Perante tais circunstâncias, todos aqueles que gozam da plena capacidade dos seus sentidos, comportar-se-iam de modo semelhante e, talvez por isso, esta personagem não aparentava estar à altura de alcançar um lugar de destaque, nem na história nem na religião, como a não teve José, que também não esteve no Calvário, nem se sabe como morreu, nem tão pouco os seus outros filhos, que não se sabe como viveram.
De um modo ornamental, exótico e supérfluo, a cena descrita passa-se tendo por pano de fundo a cidade de Jerusalém, sumida entre cômoros com forma ameloada, rascunhos de um gosto nórdico mal apreendido de entre as aspirações clássicas do Renascimento, facto que nega a possibilidade de o mestre responsável pela pintura ter estado alguma vez no Gólgota e, por maioria de razão, pudesse ter contemplado Jerusalém, de longe ou de perto. Mas este retábulo, para além de abandonar as características renascentistas tinha, como novidade, o abandono da pompa e, pior do que isso, uma interrogação esmagadora relativamente à ausência da Virgem Maria, facto que não devia estar ligado à incapacidade de o pintor a conseguir representar…

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¹ Narradores do romance “A Ultima Ponte”

Horta da Silva (2006) – Romance “A Última Ponte”

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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