Djanira Silva 29 de março de 2011

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          Naquela manhã, perdi as asas. Comecei a cair. Não estava triste. Pousei suave e leve sobre a grama. Dancei e cantei, leve e livre. Refleti-me nos olhos dos amigos passivos que carregavam carroças transportando sonhos e flores; deitei-me nos braços do cigano afoito, senti o sangue quente da cigana no cio. No meio das flores me envolvi com a folhagem de pétalas ainda perfumadas. Cavalguei animal fogoso que me conduziu aos limites não sei de onde. E assim, feliz, eu fui.
          No fim do caminho, um fio de prata preso a um portão de ferro, fechado com correntes e cadeados. Soldados armados e truculentos querendo destruir alguma coisa. Não sabiam o que, mas precisavam destruir. Mandaram fazer e eles fariam. Tinham juízo, precisavam obedecer.
          Levanto a mão, abrem-se as correntes deixando-me passar. A estrada leva-me a lugares de medo, de onde partem vozes que mandam matar. Perseguem-me. Tento fechar a grade. Não posso. Ao meu lado, nas gotas de orvalho muitas faces – a minha está refletida, apreensiva, medrosa. Todas iguais.
          Homens passam correndo, animais passam correndo, nenhum deles sabe aonde vai. A cidade está vazia. As pessoas fugiram.
          Na casa abandonada a mulher veste roupas coloridas. Sinto-me cortesã, nos vestidos de rendas, babados, fitas e decotes. Lá fora envergo o capacete de general, ando de bicicleta, dirijo um velho Ford de bigodes, faço as coisas certas em momentos loucos. Sou vassalo, obedeço, sendo rei, ordeno. Carregam-me em triunfo pelas ruas ocupadas e despovoadas. Visto-me com as fardas e uso as dragonas dos generais, recebo visitas no quarto da cortesã, sou coroada rainha, aclamada, somos tantos e um só. Não contendemos, não temos juízo para tanto. A liberdade é a força dos loucos que me leva de volta à corda bamba. O vento sacode a vida. Um segredo me persegue. Reúne numa só as muitas faces – sinto a dor, a solidão do mundo, a minha própria solidão. Procuro a poeira da lua. Quero com ela encontrar minha unidade. A loucura não finda.
          A morte devastou o mundo, derrubando o homem no meio da vegetação. Velas iluminaram seu rosto, fosco, sem reflexos. A toalha branca, manchada de vinho que escorreu dos meus lábios no dia em que chorei. Nas cartas do baralho o meu destino. Os signos dizem-me que estou perto de encontrar. Não se o quê, mas quero. Volto pelos caminhos às avessas. A dor não mudou.

Obs: Texto retirado do livro da autora – O Olho do Girassol

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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