Castigado pelo dislate do infortúnio, andava Serafim. Depois de tanta safadeza, só faltava ter visto a loja assaltada por três vezes, ele que mandara preparar as grades para cobrir tudo o que era vidro. Via-se que era obra dos drogados que toda a gente conhecia e que a polícia tratava por nome e alcunha. Meninos de bem e do mal, deste e do outro lado da vila, entalados entre a servidão que alimentava o imaginário da sua existência e a falta de coragem para enfrentar os desígnios dos genes e da urbanidade. Estafada sociedade que ainda não entendeu que o consumismo desenfreado não é solução e que está errado fazer da sombra a realidade. Segundo constava, a pedreira era o lugar onde os mariolas dividiam os proventos dos roubos e desejava enfrentá-los. Por tês vezes, tinha invadido a esquadra da Guarda Republicana para fazer participações, perante o ar contido do agente que lamentava a falta de pessoal. Era indispensável apanhar o bando em flagrante. A apreensão da droga de consumo não era delito para o tribunal os encarcerar.
– Então não devo ter esperança em recuperar os artigos roubados?
– Vamos ver, mas não é fácil! Temos um homem, na rua, a investigar!
Naquela terra, sempre se traficou pelo mar, sob a cumplicidade de autoridades. Era ver os fardos que davam à costa, especialmente de tabaco, whisky e liamba. E depois de passar a mercadoria, lá vinham as barreiras da Guarda-Fiscal e as inspecções na estrada, com aparato de circunstância. Mas, a candonga da droga pesada era assunto que deixava a erva a milhas de distância. Quem havia de dizer que um drogado podia chegar a pontos de rasgar as orelhas da mãe para sacar os brincos, pobre mulher que ia morrendo de vergonha e pranto, com a face a sangrar, quando o filho se viu sem dinheiro para a dose. Sempre que chegava droga, o corrupio não parava nos fundos do bairro. Ansioso, o paciente lançava grãos de areia à janela; a persiana tilintava e dava luz a uma nesga de breu. Um vulto certificava-se da cara do comprador e atirava uma meia para a rua. O paciente trocava a dose pelo dinheiro e devolvia a meia à janela. A persiana descia e aguardava o toque dos próximos grãos.
– Mas os lugares de venda são conhecidos, por que não prendem os traficantes?
– Os pequenos traficantes não interessam! É preciso apanhar o peixe graúdo, seguindo, ao invés, a esteira do tráfego até chegar ao mar; mas aí, o assunto passa a ser da competência da polícia marítima e da judiciária, não sabe?
«Que nojo de vida esta, na qual as pessoas honestas têm de viver por detrás de grades, enquanto os marginais se enterram no lamaçal da hipócrita liberdade» gritava Serafim para a mulher, que perdida de medo, abria a porta da fé para pedir ajuda ao anjo-da-guarda. As grades estariam prontas dentro de dias e a segurança seria restaurada. Mas Serafim, esfomeado de vingança, teimava em fazer as suas próprias investigações. Voltaria a rondar a pedreira e ainda os havia de caçar em flagrante. Levaria a caçadeira, carregada com cinco cartuchos, não fosse o diabo tecê-las. Se necessário, até passaria uns bocados da noite à espreita. A mulher havia de o entender. O rapaz entrara na idade dos abusos e assumia foros de má criação, mas continha-se quando via o pai por perto. «O respeito é muito lindo e, nesta casa, ainda se olha para cima, para falar com o chefe da família…» dizia Serafim para os seus botões, sentindo o orgulho a respingar de cogulo: «um rapazote imberbe tem de saber dobrar a espinha perante a autoridade.
– Serafim, o Nandinho quer ir a uma festa no próximo sábado! Deixas ir o moço ou não? – Inquiriu a mãe com doçura.
– Antes de ir à festa, vai ter de me ajudar a colocar as grades!
– Não devias ser tão ríspido para o rapaz! Diz que pareces mais polícia do que pai!
– Ainda bem que sente o peso da autoridade! Essas festarolas só servem para difundir o consumo de droga!
– Livra-te dessa obstinação, homem! A juventude não é toda assim!
– A nossa vizinha disse que era um lugar recatado e sem mal à mistura.
– E não falou das voltas de saia que dá por lá?
– Estás mesmo rosqueiro homem; assim não vamos longe!
As grades foram colocadas e Serafim, menos áspero com o agasalho do ferro, deu permissão ao filho para ir à festa. Por aquelas vidraças não entraria mais nenhum meliante, por muito escanzelado que fosse. Era tempo de voltar a encher a loja de mercadoria. Tinha perdido freguesia naqueles maus tempos, em que espalhava os artigos para fingir que a casa estava cheia. Na semana seguinte, até faria a montra com esmero. Dava-lhe gozo fazer montras e ver, do lado de lá, o que tinha do lado de cá. Os olhos sempre comeram mais do que os dentes, não fossem eles os indutores das ilusões. A paz encheu de novo o fim-de-semana, a pontos de a mulher se admirar com o aconchego, e até o breu se cobriu de pasmo ao ver renascer o que parecia ter morrido. Serafim esqueceu as investigações e a caçadeira e deixou reentrar aquela relação forte, feita de amizade, afoiteza, entendimento e explosão, que os uniu durante anos. As acerbidades pareciam definitivamente enterradas mas, a segunda-feira disfarçada de demónio esperava-o, pronta a envenenar a bonança e a sangrar, de novo, a quietude reencontrada. Logo que abriu o estabelecimento, sentiu esvair-se em agonias de estupefacção, quando deu conta de que a casa tinha sido, de novo, vandalizada. A caixa estava arrombada e havia artigos espalhados pelo chão e prateleiras em desalinho. Puta de perseguição aquela, que parecia coisa premeditada para o apoquentar. Desta feita, não havia dinheiro para roubar, mas faltavam os artigos fáceis de traficar. Quando deu conta de si, acelerava avenida fora direito à esquadra, e mal teve tempo de abrandar nos semáforos do cruzamento do Centro Comercial. Aqueles cabrões punham-no doido, mas ele haveria de se vingar, pulhas de uma figa, nascidos para desenterrar os maus fígados das pessoas que têm de suar para ganhar a vida. Arrancou, mal o verde lhe deu passagem, e quase que não dava conta da mão escarrapachada de um agente que lhe ordenava que encostasse. Já era conhecido da polícia, estava visto, e deviam ter novidades para lhe contar.
– Muito bons dias!
– Bons dias sr. guarda! Então que me diz!
– Os seus documentos, por favor!
– Os documentos? Exclamou perplexo, enquanto estendia a mão ao porta-luvas. Ia para a esquadra falar consigo! Fui de novo assaltado! Não se lembra de mim?
– O senhor vinha a conduzir com desatenção, fez uma travagem forçada sobre os sinais e não tem o cinto de segurança colocado.Serafim recebeu o papel da multa, deu volta na placa giratória e voltou para trás. Fechou-se na loja, chorou e espumou de raiva, até o corpo e a alma gelarem. Quando acalmou, uma sensação perturbadora estremunhava nele o prazer da transformação num animal que se alimentava de vida e, ao levantar os olhos para o espelho, deu com o fado da sua existência, traduzido na imagem da consciência assassina. Era mais um produto da sociedade de consumo, como o drogado, o ladrão, o traficante e, pior do que isso, sentia-se indispensável ao equilíbrio do mundo da marginalidade. Lá fora, continuava a viver-se no pasto dos sonhos da grandeza, dando importância a episódios comezinhos, atrás dos quais as pessoas se escondiam num desalinho harmoniosamente doentio. Fisgado pela vingança, passou a viver as noites estirado num canto da loja, abraçado à caçadeira, ora de clarabóia escancarada, ora de porta traseira semi-aberta. Mas o bando virara-se para outras vistas, parecendo adivinhar-lhe as intenções. Quem não estava de agrado com aquela doideira era a mulher, que passou a dormir abraçada à insónia, enquanto o relógio de parede batia, monotonamente, os quartos, as meias e as horas da aflição. Nandinho abusava, cada vez mais, e voltava tarde, mas dava-se ao cuidado de entrar em vale de lençóis antes de o pai meter a chave à porta. Justificava-se, dizendo que andava a ajudar os amigos a preparar uma festa de beneficência. A festarola realizou-se, sob a jura de ser a última noitada, mas o dia rompeu e o moço não voltou. Serafim, a um fio da ruptura, sentia-se no limiar do vazio e perdera o último fiozinho de interesse para entender o que quer que fosse. Polícia, estabelecimento, casa, vida, eram peças perdidas do mesmo desalinho e já os gritos da incapacidade se faziam ouvir quando o telefone tocou:

– Conhece este molho de chaves? Perguntou o guarda com ar indiferente.
– Não! Não conheço!…
– E esta chave?
– Parece a de minha casa, mas não tenho a certeza! – Sussurrou Serafim.
– E esta? – Perguntou o guarda, de forma assertiva.
– É igual à da porta de trás da minha loja! – Exclamou Serafim, inundado de perplexidade.
– Terá de ir, com dois agentes, verificar se a chave abre a porta do estabelecimento.
– E o meu filho?
– O seu filho está preso, mas está bem! Vai ser presente ao juiz e depois se verá!

Nandinho e os companheiros foram levados a tribunal e postos em liberdade. A sentença dizia: nos termos do Artº 277, Nº 2 do C.P.P não ficou provado que os arguidos fossem os autores materiais dos crimes praticados.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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