professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Morreu no ultimo sábado, em São Paulo, Irmã Maurina Borges da Silveira, franciscana, de 87 anos. De idade avançada e saúde muito frágil, faleceu em Araraquara em consequência de falência múltipla de órgãos. Religiosa desde muito jovem, aparentemente era uma freira como qualquer das muitas outras que por esse Brasil afora dão sua vida pelo Reino de Deus, fazendo os serviços mais humildes e obscuros e cuidando dos abandonados pela sociedade.

Sua vida, no entanto, foi marcada por fatos diferentes, que nunca sucederam a outras irmãs da mesma congregação. Irmã Maurina foi a única freira presa e torturada nos porões da ditadura militar brasileira. Em outubro de 1969, aos 43 anos, quando era diretora do Orfanato Lar Santana, foi presa em Ribeirão Preto, São Paulo. Ela cedia uma sala para reuniões de estudantes, ignorando que pertenciam ao grupo guerrilheiro Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Ao tomar conhecimento de que no porão do orfanato havia material impresso que eles ali guardavam, mandou queimar tudo. Depois, enterrou no quintal, sem nada dizer a ninguém, para não comprometer a instituição e proteger as órfãs por quem era responsável e também a suas irmãs de congregação.

Quando os militantes que ali se reuniam foram presos, Maurina foi levada junto com eles. Durante cinco meses a frágil mulher foi interrogada e barbaramente torturada: levou choques, foi pendurada no pau-de-arara e obrigada a assinar falsas confissões de ser amante de um dos militares. Ouviu insultos, calúnias, ameaças de morte, gritos. De tal forma foram as atrocidades a que foi submetida que o então arcebispo dom Felício da Cunha levou o caso à cúpula da instituição e excomungou dois dos delegados que se ocupavam da religiosa, Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano.

O caso de Irmã Maurina – totalmente inocente – inspirou pessoas como dom Paulo Evaristo Arns, na época bispo auxiliar e depois cardeal e arcebispo de São Paulo, a se engajar na luta social. O Brasil inteiro recorda com admiração a coragem do cardeal paulista em denunciar e combater as torturas e violações aos direitos humanos que aconteciam nos cárceres brasileiros. Todo o meio eclesial brasileiro tomou conhecimento do caso da Irmã Maurina, que recebeu o apoio de muitos cristãos, religiosos ou leigos solidários com sua situação.

Quando o cônsul japonês foi sequestrado e trocado por vários presos que foram exilados no México, Irmã Maurina estava entre eles. A notícia de que sairia do Brasil foi para ela um rude golpe. Não queria, não pensava em deixar seu pais. Algemada, entrou no avião sob os olhares espantados e chocados de muitos. Tempos depois, pode voltar ao Brasil. Desde então levou uma vida absolutamente discreta, na oração e no trabalho que sua congregação lhe pedia. Jamais consentiu em ser fotografada, nem apareceu na mídia.

Aos que lhe perguntavam como se sentia com respeito a seus carrascos, teve apenas palavras de perdão. Em recente entrevista, no entanto, declarou suspeitar que o que realmente detonou o processo de sua prisão foi o fato de que em sua creche mandavam crianças filhas de mães solteiras cujas famílias tinham posses, mas não queriam criar os filhos. Candidamente ela foi de casa em casa devolver as crianças e dizer que a creche das franciscanas não era lugar para elas. Pertencia às crianças pobres e necessitadas que não tinham onde viver. Irmã Maurina acreditava que seu gesto provocara raiva nas famílias e que a denúncia que a levou à prisão pode ter vindo dali.

Mas não cultivava ódio nem rancor de seus detratores e torturadores. Segundo testemunho de uma companheira de cela, ela dizia que sua prisão foi apenas a parte que lhe coube na História. E ponto.

Num momento em que as mulheres estão em alta no Brasil, vivendo a novidade de sua primeira presidente mulher, uma figura como a de Madre Maurina é digna de ser olhada com respeito e admiração. Sua coragem e fé inabalável diante das torturas, da prisão, do exílio varrem para bem longe o estigma de “sexo frágil” que pesa sobre a mulher em tom despectivo. A inocência e a fragilidade de Maurina foram transfiguradas em força pela graça d’Aquele a quem entregou sua vida. Agora, ressuscitada, ela o contempla sem véus nem parcialidades. Que interceda por nós, a fim de que possamos fazer um Brasil melhor para nossos filhos e netos.

Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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