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À tardinha, quase adormecendo ao pôr do sol, ao mesmo tempo exausta e contente, fui revendo, mentalmente a primeira lição aprendida nesse novo tempo, que apenas principia.

Logo depois de tomar o café nascido aqui, com pão feito com minhas próprias mãos, desci até a bica, que fica no fundo do terreno do sítio, ao pé da montanha de granito – meu monte Cilene particular.

“Melhor a senhora ir até lá e ver!” me disse a boa Conceição. E acrescentando: “Tá muito diferente…”

Cajado na mão pra me servir de amparo, sapatos da melhor borracha do seringal paraense, (que protegendo meus pés, me permite ao mesmo tempo sentir o irregular tecido da terra), cheguei depressa ao sopé. O ruído da água, cantado mais alto do que sempre ouvi, me fez adivinhar a presença de um riacho. E foi preciso lembrar cada detalhe antigo, para reconhecer, na prainha que se formou, meu antigo córrego seco.

Anos e anos passamos catando, aqui e ali, pedrinhas para assoalhar a pequena queda d’água, encanada com um tronco de embaúba, renovado de tempos em tempos e agora havia, oferecidas pela natureza dadivosa, milhares de pedras coloridas e cristalinas, amontoadas e dispersas, à disposição de minha fantasia de paisagista aprendiz.

Nem vestígio da velha embaúba condutora, mas em contrapartida, um enorme tronco de árvore ainda verde, com as raízes expostas ao espaço, deitara-se horizontalmente formando um degrau natural, no patamar onde antes acabava a bica.

“Impossível tira-lo daí!” – me diz o Tião e eu, aproximando-me da árvore tombada, verifico seu perfeito encaixe ao espaço que a acolheu. Nenhum arquiteto teria feito melhor cálculo de tamanho e espessura. Magnífico!

“Podemos fatia-la aí mesmo em toras e fazer bancos.”- propõe Tião, oferecendo soluções, temendo ainda que eu esteja descontente com a transformação do local.

Mas como eu poderia concordar com qualquer interferência, se já nem lembro quase o antigo layout daquela reserva, tão impregnada que estou com a visão futura, já presente: açucenas margeando o ribeirão, as palmeiras crescidas, erguendo-se fortalecidas pelo adubo natural que as águas trouxeram lá da fonte no alto tão distante e duas pontezinhas feitas com esses troncos arqueados, menores, mas suficientemente fortes que estão deitados a meus pés, do tamanho exato para serem aproveitados?

Percebendo meu olhar maravilhado, Tião se anima e prevê, confiante, voltando a falar da árvore maior:

– Este tronco vai brotar dos dois lados, tenho certeza!

E eu quase posso ver aquela árvore arrancada pela chuva lá do alto da montanha, descendo aos solavancos assustada e chegando apressada, trazido até aqui pela torrente, para se deitar aos pés de uma outra, antiga moradora do local que tem raízes aéreas como as dos manguezais, alteando-se elegantes como que a faze-la bailarina, na ponta de muitos elegantes pés. Perfeita combinação!

“Tudo aqui vai rebrotar!” – agora eu é que tenho a certeza.

E voltando a olhar as novas formas, penso em como terá sido, naquela noite de brilho intenso, o passar vertiginoso das águas por aqui, lavando com furor impensado pedras e plantas, revigorando com uma massagem enérgica o corpo dessa terra dormente e descobrindo um pouco mais as pedras maiores (três irmãs mais velhas que velam o lugar) para que possamos apreciar melhor seus contrastes de cores e formatos com a vegetação exuberante?

A água do riachinho novo corre translúcida. Vencendo tantos obstáculos, purificou-se e deixa ver o brilho dourado de uma areia fina pousada ao fundo, entre seixos transparentes.

Cai a tardinha… Volto para casa, mansamente, trazendo na alma a lição aprendida com a árvore/mestra: aceitar o deslocamento, o novo lugar e o destino de rebrotar no tempo certo, fazendo parte do processo, sempre.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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