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Com mais de cem anos, esta igreja começou por ser um centro católico de irlandeses que trabalharam nas obras do metro londrino. Depois, cresceu a partir de gentes oriundas de outras partes do mundo, designadamente comunidades hispano-americanas, espanholas e portuguesas. Susan McDougal integrava as actividades de “Acção Social”, cujo trabalho constituía parte da seiva do seu alimento espiritual. Após três anos de ausência, Eduardo Matias estava de volta para fazer, no King´s College, a pós-graduação em “Literatura Moderna”, facto que o levou de regresso ao convívio do sector cultural da paróquia, onde aprendera as bases do inglês que o colocou na senda do high-level diploma e de várias amizades, entre as quais pontuava Susy.
– Onde estás hospedado? – Perguntou Susy a Eddie quando este a  procurou.
– Estou num hotel há duas semanas – respondeu Eduardo num tom esmorecido – tenho gasto rios de dinheiro em jornais, agências, telefonemas e transportes, passo a vida a calcorrear e só encontrei quarto em Hammersmith. Fica demasiado longe da faculdade.
– Oh meu Deus, os hotéis são caríssimos! Por que razão não me procuraste? – Retorquiu ela pendurada num atributo genético tipicamente escocês, ao mesmo tempo que sentia o consolo a correr-lhe o corpo, para acrescentar de seguida – se quiseres, mudas-te para minha casa, até arranjares pouso definitivo.
– A propósito, já te disseram que estás bonita? – Perguntou Eddie, mais preocupado em fugir à resposta do que prestar atenção a tão solicito alvitre.
Susan sempre fora uma espécie de instituição de caridade. Prestes a abandonar os trinta e nove anos, conservava o frenesi dos vinte e fazia mover o mundo como se não precisasse de tempo para si. Semeava a doçura e comia o amargo de quem a procurava, condenando o seu corpo a trabalhos forçados e a alma à penitência do purgatório. Há muito que sabia que a beleza exterior lhe virara as costas, muito provavelmente desde que habitou, no tempo da II Guerra Mundial, o ventre faminto da mãe e, por isso, ainda embrião, começou a sofrer o desconforto da fome e das agruras do calvário. Os cabelos eram loiros, finos, esparsos, eriçados e caíam-lhe ao longo de uma face esguia, sardenta e macerada, como se pretendessem ocultar a adversidade de ser feia, mas por entre os ralos dentes amarelecidos pelo tabaco, uma brisa de sorriso recebia a luz brilhante de uns olhos azuis profundamente meditativos que, de lampejo em lampejo, transformavam as agruras interiores numa alegria serena que disseminava as múltiplas ânsias de uma existência humanista.
Eddie tinha por Susy uma profunda admiração e considerava-a a mais bela-feia que conhecera em toda a vida, a pontos de a tratar na reserva da amizade por “K”, à guisa da associação de ideias com os traços da famosa actriz de Hollywood, Katharine Hepburn. Solteirona de gema, Susan sempre se considerou um empeno na engrenagem do amor e, por isso, aceitava, como elogio, o carinho de Edward que sabia ver nela a beleza que o espelho lhe negava. Não admira, por isso que, no culto da solidão, aprendesse a sentir por ele, mais do que a estima impõe. Envelhecer não é seguir no traçado da imagem a deformação morfológica do corpo, anotando o aprofundamento das rugas, a flacidez dos músculos, a distensão das peles, o branqueamento do cabelo e outras desfigurações. É, acima de tudo, tomar consciência do que vai ficando para trás esgotado no murmúrio da lembrança, mesmo que um pouco desse muito possa, quase que por milagre, assomar à porta do futuro para dominar o rebuliço das recordações. Sempre fora feia, continuava feia e morreria feia; pior seria se tivesse sido bonita e agora ficasse a dever à beleza, os temores do eco da juventude que deixaram de a incomodar quando verificaram que os olhos continuavam luminosos e serenos e o sorriso da alma mantinha a brisa de sempre, mesmo que, por infortúnio do efeito da nicotina, os dentes estivessem mais amarelecidos. De qualquer modo, para a missa de Domingo, daria uma volta ao visual. Assim como assim, aliviar o que é feio renovava-lhe o desejo de ser mulher, sensação que batia mais forte depois do regresso de Eddie a Londres.
Ao fim de uma semana, Edward disse a Susan que, provavelmente, acabaria por aceitar a oferta do quarto. Contudo, o excesso de felicidade também pode virar tormento, a pontos de Susy passar a adormecer tarde, a escutar as previsíveis reviravoltas no quarto ao lado, entalada entre desejos que lhe surgiam ora aprazíveis ora instigadores de vergonha e que lhe aperreavam o corpo e a alma, à espera do amor que teimava em fugir. Se ele soubesse o que ela sentia, já tinha aceite a oferta para assomar à porta do quarto e pedir, educadamente, se podia sentar-se na borda da cama para conversar. Agarrar-lhe-ia na mão, diria sim àquele diálogo sem nexo, até que a cama virasse leito de paixão. «E se Eddie fosse tímido? Teria coragem para o provocar? Não…que horror de enxovalho! Ninguém digno de bom-nome aguentaria…» concluiu imersa em conjecturas. Era de facto uma situação freudiana, feita de sentimentos complexos, à guisa de um entrelaçado entre desígnios lascivos e fiapos de um amor quase maternal.
Varrendo a igreja com os olhos, Eduardo encontrou Manuela, uma colega que andava a esgaravatar sobre a autenticidade de algumas obras atribuídas a W. Shakespeare e, mais à frente, junto à coxia, viu “K” presa a um sorriso mavioso à procura do sim, a que ele correspondeu com um esgar de ombros, como quem diz: «não entendo». Ela interpretou o gesto como um sinal assertivo e ficou estarrecida. O templo estava repleto de gentes com raízes em diferentes cantos do mundo, quadro cénico que parecia acentuar as imiscibilidades humanas. Um tecto de igreja, por maior que seja a abrangência da divindade, não desfaz os guetos de raças, culturas, estratos sociais, educacionais e outros, que se congregavam sob a forma de manchas de gentes com raízes no Reino Unido, na Irlanda, na Europa Meridional, nas Américas Central e do Sul e na Ásia. Durante a homilia e a consagração, Eduardo não deixou de observar as diversas imiscibilidades humanas, onde se distinguiam por igual, os que sorvem até à última gota o sentido do acto litúrgico, até aqueles que, como ele, aproveitavam a ocasião para olhar para trás, para o lado ou para a abóbada, à procura de algo mais aliciante ou convincente. Os humanos são assim e até o contraditório é verdadeiro, não sendo raro ver os próprios ateus, em crise, implorar a ajuda divina. Segundo S. Paulo, «a letra mata, mas o espírito vivifica…» pelo que não parece adequado, nos nossos dias, interpretar à letra as sagradas escrituras.
Mas quem não cabia em si de fervedouro era Suzy, a viver o afogo do gáudio, com os olhos luminosos e tensos à espera do seu naco de oportunidade. E quando o teve, esqueceu o lugar onde se encontrava e deu a Eddie um beijo, meio na face, meio nos lábios, cujo ardor disfarçado de ternura lhe acalentou a alma à espera de saber o dia da mudança. Depois, ali parados em frente de outros que se iam juntando, as vozes e os à-vontades foram-se misturando, até que Eduardo cortou a tagarelice para se despedir repentinamente.
Manuela estava desejosa de interpelar Matias, mas o cerco em que ele se envolvera encaminhou-a desconsolada para a estação do metro. Tinha coisas para lhe contar a respeito dos êxitos das suas pesquisas e das emoções que sentia. Devia ter esperado que o grupo se desfizesse para o interceptar, mas ele estava enleado na trama de gente que circundava Susan McDougal. E, suspensa na incerteza, dirigiu-se para a bilheteira e pediu Earls Court Road. Quando o comboio partiu, sentiu-se como se fosse uma partícula de um líquido em escoamento. E, nesse estado de fluidez, deu consigo boiando dentro de uma carruagem onde as pessoas dançavam um bailado irracionalmente tolerado. A composição desacelerou e os cartazes da estação de Gloucester apareceram. O impulso activo voltou a accionar o escoamento, até que os fluidos humanos se comprimiram, de novo, junto às portas. A composição voltou a arrancar célere, reiniciando a dança das partículas, sem que isso alterasse os múltiplos pensamentos que pairavam nas mentes de cada um, para logo de seguida travar à aproximação de Earls Court. Manuela saiu e seguiu pelas escadas. Um cartaz anunciava uma exibição de gala no Royal Festival Hall, mas ela não ligou. Estava absorta e desatinada com o contratempo, quando alguém lhe puxou pelo casaco. Teve medo e evitou olhar para trás. Desprendeu-se e acelerou o passo, mas não conseguiu impedir que hordas de gente continuassem a passar por ela. Quando atingiu o topo, trazia alívio estampado no rosto e o peito a abarrotar de ansiedade. Olhou o intruso no cimo do pedestal, deixou que as escadas rolassem ao som do rufar do desejo e parou em frente de Eduardo, sem conseguir soltar um filamento de voz. Ele afastou-lhe a marrafa e ficou a contemplar aquela insólita beleza na profundidade de um olhar recheado de ambiguidades até que, num repente, sentiram-se sufocadamente abraçados, como se quisessem trocar de corações, enquanto a inocência se elevava acima do plano da realidade, pois nada era postiço ao reparo dos cúmulos de gente que passavam.
Quando Eddy voltou a encontrar Suzy, deu-lhe um beijo impregnado de amizade e solicitude, que a aragem rapidamente se encarregou de levar para longe, desfez-se em agradecimentos e disse que, acidentalmente, tinha encontrado um quarto maravilhoso pertinho de Earls Court Road…
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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