Maria Clara Lucchetti Bingemer 7 de fevereiro de 2011

professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Há luto e orfandade em San Cristobal, Chiapas. E no coração de todos os indígenas e povos nativos da América que há séculos sofrem as consequências da opressão imposta pelos colonizadores brancos. Faleceu seu jTatic, dom Samuel Ruiz.

A palavra jTatic quer dizer “pai” em língua tzotzil e foi o carinhoso nome que os indígenas de São Cristobal deram a seu bispo. Com isso, desejavam expressar reconhecimento pelo desvelo de dom Samuel para com eles, por sua paternal proteção em relação a todas as perseguições e sofrimentos, pela coragem inquebrantável dele em defesa de seus direitos.

Nascido há 86 anos na cidade mexicana de Irapuato, no centro do país, dom Samuel foi designado, em 1959, bispo de San Cristobal de las Casas, em Chiapas. Encontrou uma diocese extremamente pobre, na sua maioria, indígena e profundamente golpeada por abusos e injustiças. Seus olhos de profeta se indignaram com a visão do dorso chagado dos indígenas sob o chicote dos proprietários de terras. Seu coração de pastor derramou lágrimas de compaixão diante do sofrimento das jovens indígenas submetidas ao ignóbil “direito de pernada”, que permitia ao patrão deitar-se com elas para constatar sua virgindade antes do casamento.

Logo compreendeu que se fazia necessária uma teologia e uma pastoral corajosas para agir contra esse tipo de situação. Tomou posições de extrema coragem na defesa dos indígenas e não temeu assumir publicamente que via na libertação dos pobres – constitutiva do Evangelho e prioridade iniludível de todo cristão – sua opção principal como bispo.

Durante as quatro décadas em que esteve à frente da diocese de San Cristobal, e até sua morte, o jTatic, como foi chamado carinhosamente pela população indígena de Chiapas que seguia maciça e devotamente suas homilias e pronunciamentos, lutou incansavelmente pela defesa dos direitos humanos. Seu compromisso o levou a aprender quatro idiomas originários da região. Além disso, ali fundou um excelente e prestigioso centro de direitos humanos em 1989.

Foi também um construtor da paz. Fez a mediação entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional e o governo, após o levantamento armado da guerrilha de 1994, em Chiapas. O governo do então presidente Ernesto Zedillo o acusou de incitar à violência por seu trabalho com as comunidades, das quais surgiu a guerrilha do subcomandante Marcos, e apoio às reivindicações sociais por ele apresentadas.

Porém, foi graças à mediação do bispo que as partes conseguiram chegar a um acordo em 1996, obtendo do governo a promessa de atender as demandas do grupo rebelde. Pelo extraordinário papel que desempenhou nesse conflito, dom Samuel foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Já como bispo emérito, retirado em Queretaro, continuou colaborando com a ONG por ele fundada e mediando outros conflitos, como o de 2008 entre o governo e o Exército Popular Revolucionário.

Na missa de seu funeral, o bispo de Saltillo, dom Raul Vera, recordou a vida admirável de seu companheiro de episcopado, que tinha como lema de seu ministério a frase do profeta Jeremias: “Para construir e plantar”. Como o profeta, dom Samuel provocava contradição: amado e abençoado pelos pobres e condenado por outros setores da sociedade que não aceitavam suas fortes e interpeladoras palavras e seus proféticos gestos.

Hoje os indígenas choram a ausência de seu jTatic, ao mesmo tempo em que celebram sua ressurreição. Perseguido e incompreendido enquanto vivia, dom Samuel não deixou de ser misericordioso e de dar-se inteiro à luta pela justiça e ao amor desvelado pelos pobres. Atacado e ameaçado de todas as maneiras possíveis por aqueles a quem sua pastoral incomodava, respondeu com perdão e mansidão, sem mitigar em nada a força de sua palavra e sua atuação profética. Construiu e plantou! Bem-aventurado e predileto de Deus, entra agora no gozo de seu Senhor.

Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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