Djanira Silva 15 de fevereiro de 2011
            O entardecer doía em minha vida, O amor doía em minha alma. Uma ameaça de noite entrou pela janela, atravessou o vitral, iluminou o anjo, revelou a história de Moisés, o sacrifício de Abraão, a sabedoria de Salomão. No eco ouviam-se os salmos de Davi. Enfeitiçada fiquei presa aos mistérios. Não devia partir. Não parti.
            A escuridão roubara a luz dos círios o calor, às flores do altar, o perfume, ao vento a força invisível. A escuridão, última preocupação de Deus, desapareceu em si mesma. O mundo perfumou-se com as rosas mortas. As rosas, a alma das rosas, a minha dor. Onde estaria o perfume que poderia me transformar em for? Deus não dissera: faça-se na mulher o perfume. Onde as asas brancas que me tornariam anjo? Os braços que me abraçariam me tornando amor? Deus não ordenara os meus sonhos. Parti sem perfume, sem asas, sem amor sem sonhos. Eis-me aqui a Vossos pés, Senhor, à espera da palavra que me transforme.
            Sou uma pergunta que se pergunta sempre. Paz no Sol da música, no sol da réstia que se projeta no chão coberto de rosas caídas. Paz no Lá da melodia, paz lá que é lá aonde desejo ir. A música em cadeia se une e se parte construindo acordes de som e rasgos de luz ao mesmo tempo. Som claro, sol escuro, céu luminoso. Tua voz é a nesga de luz que me procura e me encontra ajoelhada contrita, rezando “eu” em todas as rezas em todas as orações à espera da palavra Divina – “Faça-se”. Mas não me completo por ter medo de ouvir: “Amém, Assim Seja “.
            Tenho medo de ver-me concluída. Escondo o rosto entre as mãos e de olhos fechados me vejo muitas – no mundo como uma grande bolha de sabão que me transforma em múltiplos de mim. Aguardo o momento em que tua voz me chamará. Esperei tanto. Tenho medo que o som de tua voz dissolva as bolhas que me contém. Nesta espera, sofro, e sofro diferente porque não posso compreender os mistérios que me envolvem. Espero a luz que ilumine a alma apagada. Espero.
            De olhos cerrados mergulho no rio que corre cheio dos aleluias da tua voz. Por que a alegria?
            Penetro num quadro de Rubens e meu corpo descansa lânguido à espera do amor. Estou presa novamente entre as vozes que se espalham pela igreja. Canto com Salomão. Sequer escuto minha voz. O poema fugiu. Não cabe ali. Sou a sombra de uma alma penada perdida entre solfejos, palavras, telas coloridas.
            As paredes estremecem. A voz desperta fantasmas. Eles acordam na suavidade das palavras. Denunciam a presença de Hamlet declamando sua dor pelos corredores do templo. Os pecados do mundo lhe serão perdoados. Por que carregar culpas? Ecoam nas almas as palavras do Credo. É preciso acreditar para que o mundo exista.
            Sombras negras escondem os vitrais. A condenação do vampiro cego, esvoaçante passeia pelas almas que se danam pelos espaços onde não podem ver.
            O som ameaça seu vôo num preguiçoso solfejo e, de repente, foge da humildade e cresce e grita um desabafo. Um grito faz tremer a alma medrosa, sem fé, quase partindo os vitrais coloridos, quase arrebentando as asas negras que se escondem no cair da tarde.
            Vultos de mulheres, vestidas de negro, viúvas de si mesmas, se esgueiram pelas laterais e se postam de joelhos, contritas buscando nas chamas das velas o caminho do céu. “Orai pro nobis” – Quem terá a preocupação de orar pro nobis?
            Silêncio na tarde, silêncio na noite, silêncio na voz. O incenso cumpriu, as rosas se cumpriram. Somente a dor continua sofrendo, esvoaçando, animal cego, vestida de negro.
            Mãos imploram perdão. Para que pecar e pedir perdão? O pecado desmoralizado torna-se virtude.
            Ninguém tem culpa de estar cumprindo ou descumprindo um tratado que não assinou. A vida é um contrato unilateral. Caminhar não basta, esperar não basta, parar não basta. Sofrer é preciso para encontrar os caminhos onde a mentira abre os braços acenando para uma realidade que só existe na dor.
            Noite escura e triste. As vozes não se calam. Continuam pedindo, implorando piedade, pelas almas rebeldes que não querem rezas, querem ser assim. Noite, noite, sem brilho, sem vitrais, apenas os morcegos vindos do desconhecido permanecem nas trevas que assustam o homem – o que atravessou a rua, o que inseminou a mulher, o que abandonou o irmão na primeira estrada. Todos estão perdidos no canto da morte que pintou de negro as paredes do templo.
            Rubens, Michelangelo, Rafael, acabam seus quadros na melancolia do tempo. Hamlet o Rei Lear, Otelo, incorporam suas almas a uma legião de sombras que não são anjos, gravadas nas almas aprisionadas nas telas. A mona Lisa esquecida no sorriso e na moldura, no pensamento de Da Vinci. Não é possível ir adiante das rezas e dos murmúrios. Amém. Assim seja. Aleluia.
Obs: Texto retirado do livro da autora – O Olho do Girassol
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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