Jacinta Dantas 28 de fevereiro de 2011

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De longe, passeando pela praia, percebi que ele estava compenetrado. Sentado no banquinho de madeira, parecia extasiado, completamente entregue às maravilhas que o lugar lhe proporcionava. Coloquei-me ao seu lado, e, respeitando seu silêncio, fiquei ali, ouvindo o som das ondas que vinham e voltavam, num compasso que mais parecia um canto de paz. Nossos olhares se cruzaram e pensei que no seu olhar havia nostalgia, como se recordasse tempos passados vividos de alegria, dor, tristeza, euforia…

Interrompi o silêncio com um sorriso. Carinhosamente ele me estendeu a mão num gesto de desejar que o dia fosse bom. O alvorecer para ele começara muito cedo e eu ali, atrapalhando aquela contemplação do passado. Sentimento que se desfez a partir do cumprimento de bom dia. Em dois dedinhos de prosa, já sabia seu nome – Sr. Bento – nome imponente do homem que viveu mais de 50 anos no mar e do mar, no oficio de levar e trazer pessoas, produtos e o que mais precisasse sair ou voltar para a Praia de Jabaquara, fizesse chuva ou fizesse sol, lá estava ele, remando, na lida diária.

Trabalhou de sol a sol, e, como barqueiro, teve o mar como companheiro e parceiro na luta do dia-a-dia para prover o sustento da família. Tempos difíceis de dias em que só dava para comer uma única vez. De um jeito jocoso, afirmou não concordar com o refrão da música, imortalizada na voz de Bete Carvalho, que diz: no tempo do “dérreis” e do vintém se vivia muito bem […] Sem medo de errar, e, com jeito de quem reconhece a beleza das coisas boas da vida, enfatizou que agora é que se vive muito bem, complementando que o tempo de hoje é muito melhor, pois é nele – no tempo de agora – que sua vida acontece.

E ficamos ali, proseando. Em poucos minutos de conversa orgulhosamente ele foi contando que criou 10 filhos e agora, na sua família, tem advogado, professor, funcionário público graduado, médico e até uma bisneta que mexe com o mar (a profissão da bisneta ele não soube dizer). Fez questão de se levantar e, apoiado em sua bengala, convidou-me para caminhar. Caminhamos juntos, lado a lado à beira mar e chegamos a uma Igrejinha. Tirando o chapéu, fez o sinal da cruz e logo foi dizendo que a Igrejinha de São João fora construída por ele. Depois corrigiu dizendo que não a fez sozinho. Um amigo seu também participou de frente na construção – mas ele foi o cabeça que comandava o pessoal – e tudo fora realizado em forma de mutirão, enfatizou.

Do alto de seus 87 anos, acenando com o chapéu e voltando o olhar para o céu, relembrou vários amigos que já partiram para a morada de Deus, inclusive o companheiro na construção da Igrejinha. No rosto, os sulcos, marcas esculpidas pelo tempo, vão remodelando seu olhar diante da vida. Já não há mais a correria, pois esse mesmo tempo, segundo ele, agora corre a seu favor.

Voltei para a pousada feliz com a intensidade daquele olhar que reverencia o céu e o mar. Quanta sabedoria acumulada em suas experiências eu poderia explorar. Dos instantes que passamos juntos ficou a dimensão do encontro com o outro no encontro comigo mesma. Ficou, também, a experiência de vivenciar o dia com alegria, valorizando o que se conquista de bom no caminho feito. E, na despedida, senti saudades de outro velho que também já partiu. Meu velho pai, que com o ofício de carpinteiro, como o bom José, deu sua contribuição para a formação da pessoa que sou hoje. Então percebi que a nostalgia era minha.

Obs: Imagem da autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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