-professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Tom Jobim cantou e Elis Regina imortalizou em sua voz única o fenômeno das águas de março que fecham o verão e trazem promessa de vida ao coração. No entanto, as águas de janeiro e fevereiro (que, às vezes, começam a cair já em dezembro) chegam todos os anos não como promessa de vida, mas como realidade dura, violenta e dolorosa de morte, desaparecimento de pessoas, desabrigo de centenas e um rastro amargo de tristeza e dor.
Todo o Brasil e mesmo o exterior estão vendo a situação que o Estado do Rio de Janeiro enfrenta com as chuvas e as enchentes nas principais cidades da região serrana, feitas para o descanso do calor da grande cidade: Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo. Milhares de jornais em todo país divulgam a cada hora o número de mortos já encontrados e este passa de oitocentos. Há centenas de desaparecidos e seus familiares vivem a indizível angústia de procurar corpos que não se sabe onde estão nem se poderão ser localizados.
Ao lado disso, a tristeza do desabrigo de quem perdeu tudo que levou uma vida inteira para construir: uma casa, objetos, eletrodomésticos. Tudo. A imagem dos destroços das casas pelas encostas, o desalento das pessoas nos abrigos são a própria imagem da desolação.
O sepultamento das vítimas se dá sem velório e suas covas são improvisadas nos cemitérios das cidades atingidas, insuficientes para a quantidade de corpos a enterrar. O macabro desfile de pessoas enterrando parentes, um ou mais de um, continua diante de nossos olhos perplexos com a devastação que as águas de janeiro fizeram e ameaçam ainda fazer. As buscas pelos desaparecidos continuam, mas a chuva atrapalha muito e retarda o trabalho da Defesa Civil e dos bombeiros.
O que choca mais, no entanto, quando se reflete sobre essa tragédia é que ela vem se tornando tristemente crônica. Repete-se anualmente como um filme que se vê de novo, e de novo e de novo. Já em 1966, na cidade do Rio de Janeiro, choveu 245 milímetros em 24 horas e os deslizamentos de terra nas favelas causaram mais de 140 mortes. O então governador Negrão de Lima foi duramente interpelado pela população e foram esperadas providências nas encostas, nos rios… nunca tomadas. Depois disso houve outras, muitas outras tragédias como essa. Mas nos últimos anos parece que a coisa vem se agravando. Em fevereiro de 2009, a chuva havia deixado 3.605 desalojados só no estado do Rio. Na virada para 2010, uma tragédia em Angra dos Reis (RJ) deixou morte e tristeza em quatro famílias. As poucas pessoas que se salvaram somente o fizeram porque caíram no mar. Agora, em janeiro de 2011, essa tragédia toma a maior proporção de todas já vistas.
O governador Sérgio Cabral culpou o tempo: a intensidade dos temporais, a violência das chuvas, etc. E as pessoas: a ocupação irregular das encostas, em áreas de deslizamento, de maneira irresponsável etc. Ora, ao que se sabe, a responsabilidade pela ocupação em áreas de risco é do governo municipal. Porém, ao município interessa a arrecadação de impostos, o incremento do turismo. O resultado é que não só moradias populares são construídas nas perigosas encostas. Pousadas, hotéis e condomínios de luxo foram proliferando e se multiplicando ao longo do tempo. As construções enfraquecem o solo, eliminando a mata nativa, cujas raízes ajudam a fixar a terra. Além disso, os rios, não dragados, transbordam e provocam catástrofes, como a morte da família inteira de Erick de Carvalho em uma casa de veraneio no Vale do Cuiabá.
O impacto da tragédia, para os sobreviventes, vai além das perdas materiais. Deixa profundas feridas psicológicas, dificilmente cicatrizáveis. Num momento assim, a mobilização das comunidades torna-se tão importante quanto o amparo governamental. Apoio psicológico está sendo providenciado para os atingidos. No entanto, é de se esperar que finalmente sejam tomadas enérgicas providências de fiscalização nas encostas, desativando as residências inviáveis e dando suporte às construções, para que tragédias como essa não voltem a acontecer. Não é possível que todos os verões se transformem num pesadelo de proporções cada vez piores, quando correções na estrutura de construção e medidas preventivas podem ser tomadas.
Que cheguem as águas de março com promessa de vida. Mas que não mais as águas de janeiro e fevereiro provoquem tantos estragos e custem tantas vidas humanas como até agora.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
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