Maria Inez do Espírito Santo 1 de fevereiro de 2011

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Com seu povo dividido entre os que sofreram diretamente as consequências da enxurrada devastadora; os que se solidarizaram com as vítimas e passaram a contribuir tentando amenizar sua dor; os que gastam os dias, desde a tragédia, repetindo teorias a respeito dos porquês e dos comos; os que parecem ter apenas ouvido ao longe as notícias e continuaram suas vidas sem qualquer vestígio de respingo; os que se aproveitam da péssima “boa” hora para ter algum ganho direto ou indireto; os que sentem na alma tanto desencontro e limitação, o Estado do Rio vive seu drama e vai iniciando, uma quinzena depois, um discreto início de processo de convalescença.

Hoje, depois de ter que esperar ansiosamente mais de uma quinzena por este momento, saindo do impecável céu azul do Rio, amanheci a caminho de Bom Jardim. Coração apertado, mas olhos bem abertos, vim tentando ampliar os horizontes à minha frente, buscando, nos flancos das montanhas que vão se alternando e formando molduras com seus contornos coloridos, as feridas da batalha travada entre Céu e Terra .

Ao contrário do que imaginava, vim apreciando a estrada se repetir, bela como sempre, mesmo quando apareceram, já quase às portas de Nova Friburgo, os sinais das primeiras barreiras que deslizaram aqui e ali, acidentes que não posso evitar de me parecerem quase parte de um cenário familiar, tão comuns que sempre são, nos períodos de verão.

Já corria a tentação de ensaiar certo otimismo, o que não me é costumeiro, quando, ao desembarcar na Rodoviária Sul, o mal estar da surpresa de ver pilhas e pilhas de donativos espalhados no chão, me acordou do torpor e me fez voltar à realidade de estar vivendo um episódio terrível e longe de ser superado, evidentemente.

Buscando informação para aquele abandono das mercadorias, descubro que faltam: espaço para organizar o que vem sendo doado, gente para cuidar de selecionar tanto material e transporte para fazer chegar aos necessitados tudo o que lhes é enviado. Ali, no chão, me explicam, está apenas o que foi trazido pela transportadora da viação 1001 e que, por enquanto, não tem como chegar aos galpões de atendimento aos desabrigados.

E lá vou eu, me deixando levar pelo hábito de ser crítica, na busca de identificar os responsáveis por essas faltas, quando me lembro de minha própria incapacidade de ir e vir a qualquer destino útil, se ainda precisava resgatar meu carro, abandonado involuntária e inevitavelmente, há quase vinte dias, no estacionamento da rodoviária, desde quando fui trabalhar, para voltar dois dias depois e aconteceu o imprevisto e a interceptação das estradas, impossibilitando meu retorno ao lar. De posse do carro, escolho, com autonomia, a rota que me permita testemunhar o que de fato aconteceu.

Começa logo ali, na Praça do Suspiro, a visão da tragédia: montanhas aparecem absurdamente escorridas, como uma pintura borrada ou como um jogo de armar desmanchado por um brincante descuidado.

No ar, uma névoa bege, de poeira sufocante, cobre tudo, obrigando o uso de máscaras protetoras. Meus olhos e minha garganta ardem quanto chego ao Superpão. Este empório, verdadeira copa/cozinha farta, que, habitualmente, acolhe moradores e visitantes de Friburgo com inumeráveis guloseimas, está desfalcado tanto dos produtos como da tradicional simpatia esfuziante de sua gente. A casa mantém-se, verdade se diga, cortês e disponível, mas deixa entrever a tristeza no vazio das prateleiras e dos sorrisos. Consternada, ouço da moça do caixa que todos ali perderam, nesses dias, algum amigo ou parente.

Sigo meu caminho, desalentada e vejo que mesmo os bairros que não foram atingidos pela violência da chuva inclemente, têm, na paisagem distante, marcas do ataque sofrido ao enquadre verde azulado das serras, tão lindo quanto frágil.

Dali pra frente, impossível não me emocionar. De todos os lados vejo centenas de pessoas trabalhando incessantemente ainda, tantos dias depois do temporal, tirando terra, lavando, transportando, esvaziando casas e galpões de toneladas de materiais destruídos, além das montanhas de detritos, pedras, restos de árvores e sabe-se lá mais o quê mais, que aqueles mundaréus de barro conseguem ocultar.

Prédios e prédios, que fui me acostumando a ver se multiplicarem com o passar dos anos, encrustados nas encostas (o que sempre me inquietou, preciso confessar), mal identifico agora, destruídos, despedaçados, compondo imagens semelhantes aos de uma cidade bombardeada. Margeando o rio, a devastação causada pelas águas nos envolve irremediavelmente. E a estrada parece se alongar mais e mais, crescida talvez pela dor de ser registro do desamparo e do desespero vividos ali.

Enfim, estarrecida, não sei quanto tempo depois, chego à estradinha de minha aldeia. Aliviada, verifico que o abrigo de idosos que existe bem próximo dali, incrivelmente nada sofreu. No posto de gasolina mais próximo, ouço a informação de que depois de 15 dias os telefones fixos vão, enfim, voltar a funcionar, talvez hoje ou amanhã. Esperança de volta à normalidade dos negócios…

E agora, ao Retiro, meu retiro.

O caminho é de terra. De um lado a encosta, do outro a várzea. Tudo entre montanhas verdes, com casas simples, salpicadas entre pequenas plantações e quintais vadios. Bois e vacas pastam na tranqüilidade de ocuparem, sem dúvidas, seus mesmos lugares sagrados, na paisagem e na vida Aqui e ali, ultrapasso deslizamentos, obstáculos já retirados pelo grupo de moradores locais, em trabalho de mutirão. Com alívio, reencontro meus vizinhos amigos, parceiros dos cuidados com meu sítio. E eles contam:

“Aquela foi uma noite de tamanha claridade, algo muito estranho, que, mesmo sob a chuva torrencial fazia lembrar uma noite de lua cheia. Nenhum vento. De dentro das casas se podia ver tudo lá fora, tal era o brilho dos relâmpagos que explodiram, sem cessar, horas e horas, por toda a madrugada…” Ninguém dormiu. Estranhamento, temor, ansiedade faziam com que velassem não sabem dizer o quê.

De manhã, poucas marcas na terra ao redor, nenhum prejuízo maior, nenhuma vítima das chuvas. Não havia luz desde as primeiras horas. Os telefones mudos. Depois, as notícias foram chegando aos poucos, por um e outro morador que conseguia, em velhos rádios de pilha sintonizar o noticiário de uma cidade distante. O terror: Friburgo destruído. Bom Jardim isolado. Banquete alagado. Não sabiam mais. A estradinha, interrompida ao tráfego, foi percorrida a pé para procurar saber dos parentes.

Passaram uma semana sem eletricidade, sem telefone e pelo menos três dias sem estrada. Livres, é verdade, dos intoxicantes informativos da TV. Até hoje, a chegada a Bom Jardim é precária. Mas, aqui, dizem eles, orgulhosos e aliviados, somos “ricos”. Não nos falta nada.

Depois de ouvi-los e agradecer seus cuidados, entro em casa. Abro o portão e a encontro ali, como a deixei, ensolarada, sorrindo timidamente para mim, como que estranhando minha ausência, por tempo maior que o combinado.

E sei que é daqui, desse colo verde e ameno, que vou reencontrar a força e a coragem para participar de toda reconstrução necessária. Aprendendo e recordando, pouco a pouco, com esta terra boa, as lições da misteriosa harmonia da Vida.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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