Djanira Silva 10 de janeiro de 2011

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          Entre porcelanas e cristais a infância escorregou, ligeira, esquecida. Mãos cuidadosas lustravam as pratarias. Mãos ocupadas omitiam carícias. Ali perto havia uma criança que não brilhava, não era um móvel, e às vezes tinha medo de crescer e deixar o quintal, as árvores, a imagem nas águas do tanque. Ali não se sabia da existência daquelas coisas. O pai e a mãe tinham seus próprios mundos. Ele, escondido entre maços de dinheiro e montes de moedas que moravam num cofre verde, cheio de segredos. Passei a vida inteira querendo ter um segredo. Ela morava num silêncio triste, um silêncio não reclamar, caminhando, preparando o mundo para a gente existir. Nunca lhe perguntaram se pensava, se sonhava, se sofria. Eu passava por entre os adultos da mesma forma que passavam o gato, o cachorro, as galinhas. Para ser uma criança feliz bastava comer e dormir.
          Nunca consegui entender bem o que acontecia na nossa casa. As cadeiras da sala pertenciam às visitas. Os copos de cristal e a louça inglesa, também. A gente só podia sentar nas cadeiras da sala de jantar, nos tamboretes da cozinha, ou no chão. Para os estranhos o conforto, o luxo. Com o pai em casa, imperava o silêncio, um silêncio de mandar, só se abria a boca para comer. A presença dele enchia o mundo de medo. Eu tinha medo do som da voz grossa e perigosa do mesmo jeito que tinha medo do trovão.
          As pessoas grandes estavam sempre ocupadas. Cuidavam de tudo. Eu não queria crescer e ficar assim. O sorriso da minha mãe era um sorriso frio, como de quem só tem lembranças tristes. Quando eu crescesse haveria de lhe perguntar suas tristezas. Ela não esperou.
          Não sabíamos nada da vida lá fora. Eu só sabia das coisas mais importantes porque costumava ouvir, escondida, atrás da janela as conversas de minha mãe com as amigas quando à noite colocavam cadeiras na calçada. Está na hora de dormir, vão para dentro. Escondia-me no quarto e pelas frestas dos postigos ouvia tudo. Falavam, quase sempre, dos maridos. Aliás, eu continuava sem saber para que serviam. Pelo que elas contavam, nenhum deles prestava. Um bebia demais, e chegava em casa batendo até no vento. Outro era calado não dava uma palavra dentro de casa mas quando chegava a noite queria…. zzzzzzz. Aí ela baixava a voz e me deixava sem saber o que é que ele queria. Depois de muito falarem uma delas contou ter ido ao médico e ele disse que ela sofria de incômodo de senhora. Então, fiquei sabendo, com toda a certeza, que incômodo de senhora era o marido.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Memórias do Vento

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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